A leitura do Documento Base, como elemento orientador para a V Conferência da Igualdade Racial, indica que a tarefa dos conferencistas que dela participarem será gigantesca.
Em que pese as boas intenções contidas nos textos apresentados (Democracia, Justiça Racial e Reparação), lamentavelmente, as abordagens e reflexões neles contidas estão muito aquém dos desafios que o cenário político, econômico e social brasileiro está a exigir.
Três questões chamam a atenção e são preocupantes:
A primeira delas é a ausência de propostas que deem conta da necessidade urgente de o movimento negro brasileiro se rearticular com outros segmentos importantes da sociedade civil na defesa da democracia e do fortalecimento das instituições democráticas.
Até porque o movimento negro foi um ator importante quando da derrubada da ditadura militar no país e sempre esteve lado a lado com as forças democráticas na reconstrução da democracia no Brasil. Muitos militantes negros deram suas vidas por esta causa
O documento da Conferência passa a impressão de que essa participação não tem a menor importância. Isso porque, além de uma abordagem genérica sobre o tema, o documento não se debruça, nem muito menos aponta para a necessidade de engajamento das entidades e lideranças do movimento negro na consolidação democrática e que, para tanto, é necessário construir alianças e participar ativamente da defesa da democracia, mobilizando grupos e comunidades.
Equivocadamente, o documento trata a democracia como se fosse algo sem riscos. Ao que parece, a trama do golpe militar (8 de janeiro de 2023), que por pouco não levou o Brasil para uma tragédia de proporções inimagináveis, não nos diz respeito. Deve ser coisa do STF e dos políticos, e não da sociedade como um todo. Neste sentido, é bom lembrar que, sem democracia e sem instituições democráticas, não haverá a menor possibilidade de garantia dos espaços tão duramente conquistados pelo movimento negro brasileiro, a exemplo da Lei de Cotas, que por pouco não foi derrubada ano passado pelo Congresso Nacional.
A segunda questão é a ausência (e aí parece que proposital ou por falta de coragem política) de qualquer menção à questão orçamentária. Quem é ativista do movimento negro sabe perfeitamente da penúria e das dificuldades que os organismos de promoção da igualdade vivem no país, seja em que instância for — municipal, estadual ou federal — para pôr em pé qualquer política de ação afirmativa.
Portanto, tratar desse assunto é uma questão de responsabilidade política e não uma afronta ao governo. Por mais boa vontade e competência que os atuais dirigentes possuam (que não é o caso), sem orçamento adequado não há a menor possibilidade de se promover a igualdade racial no país.
Cordas vocais, saliva e teclado são muito bons para a enunciação das ideias. Mas, para sua execução, é fundamental termos recursos materiais e humanos capazes de concretizá-las. E, nesse aspecto, os setores conservadores que compõem o governo estão ganhando de lavada nessa área. Aqui vale o provérbio: “quem não é visto, não é desejado”. Se não brigamos pelo orçamento, é porque estamos satisfeitos. E isso não parece ser razoável.
A terceira questão diz respeito ao silêncio ensurdecedor sobre a elaboração de uma agenda política que unifique o movimento negro brasileiro, que retome o diálogo com as entidades e lideranças de todo o país (e não apenas do Centro-Sul), até porque são visíveis as fraturas. A discussão de uma agenda política mínima facilitaria a unidade do movimento nacionalmente, a abordagem de temas delicados, bem como seus encaminhamentos, sem que o movimento negro como um todo seja vitimado.
Além disso, uma agenda política acordada nacionalmente será de fundamental importância para o enfrentamento da onda conservadora que se avizinha, a partir dos Estados Unidos, e que tentará pôr abaixo todas as conquistas alcançadas pela população negra, LGBTQI+, mulheres, meio ambiente e trabalhadores em geral.
Enfim, que a V Conferência da Igualdade Racial tenha sabedoria, tranquilidade e firmeza necessárias para que o combate ao racismo e a promoção da igualdade racial no Brasil possam avançar e que possamos assim contribuir para a consolidação da democracia em nosso país.
Toca a zabumba que a terra é nossa!
[Os textos assinados não refletem, necessariamente, a opinião da Revista Raça].