Por Denise Ferreira e Delina Santos Azevedo*
“No dia 14 de maio, eu saí por aí
Não tinha trabalho, nem casa, nem pra onde ir
Levando a senzala na alma, subi a favela
Pensando em um dia descer, mas eu nunca desci…”.
Lazzo Matumbi e Jorge Portugal
Antes de iniciarmos as reflexões acerca da adoção étnico-racial e passado o mês de maio, é importante recordar os alguns simbolismos próprios desse mês: 25 é o Dia Nacional da Adoção e o Dia da África; 14 de maio é o dia seguinte ao da assinatura da Lei Áurea, que ingressa em nosso ordenamento jurídico em 1888 para declarar abolida a escravidão, cujos efeitos perduram até os dias atuais.
O grito de Lazzo Matumbi e Jorge Portugal, nos versos da canção 14 de maio, ecoa e nos convida a olhar com profundidade a abolição e as relações raciais no Brasil. Contrariando o mito da liberdade concedida, o dia seguinte marcou o início secular do abandono oficializado das populações negras. 137 anos depois, a maioria do povo brasileiro ainda sofre cotidianamente expressões do racismo estrutural e institucional em todos os aspectos da vida social. A própria adoção, inclusive, não foge desses tentáculos.
O Dia Nacional da Adoção e o Dia da África nos revelam uma significativa intersecção: ao mesmo tempo em que nos convocam a celebrar, acolher e construir laços afetivos, para além dos biológicos, também rememoram a herança de um continente que, embora berço da humanidade, do conhecimento e da civilização, é historicamente marginalizado e estigmatizado.
Hoje, compreendemos a importância da (re)descoberta da nossa história e ancestralidade, de onde vêm nossos passos e para onde queremos ir.
Por outro lado, é preciso reconhecer que nosso longo e cruel passado de escravização de pessoas africanas e seus descendentes nos legou uma história, ainda presente, de desigualdade racial, realidade que se perpetua também quando o assunto é a adoção.
O Sistema Nacional de Adoção (SNA) revela que, do total de crianças e adolescentes institucionalizadas disponíveis para adoção, aproximadamente 70% são negras (pretas e pardas). Apesar de serem maioria na fila de adoção, crianças negras são adotadas em menor proporção do que crianças brancas. Preteridas pelos adotantes, crianças negras vivem à espera de uma família, que, muitas vezes, não chega.
Essa disparidade é mais do que coincidência ou “preferência pessoal”. Expressa manifestações do racismo estrutural, que hierarquiza pela cor/etnia as oportunidades, e do racismo institucional, presente nas engrenagens dos Sistemas de Justiça, Saúde, Educação, Assistência Social e políticas públicas.
No campo da adoção, isso se manifesta na naturalização da “branquitude” como sinônimo de pureza, afeto e futuro promissor. A infância negra, por outro lado, é marcada por um estereótipo de suspeição e, consequentemente, por um histórico de invisibilidade e abandono, como se fossem menos dignas de afeto e de oportunidades ou mais difíceis de “se adaptarem” à convivência familiar.
No cotidiano dos contos de fadas das infâncias negras, as migalhas (de pão e de afeto) não se transformam em doces sonhos ou em um final feliz de retorno ao lar. Nem mesmo o mágico mundo de fantasia da Terra do Nunca seria capaz de despertar nossos “Meninos Perdidos” do pesadelo da infância roubada.
O enredo de “Os 4 da Candelária” é comum à infância de muitas crianças negras no Brasil, atravessada pela dor do abandono, da perda precoce dos pais, mas também da rejeição silenciosa e cruel que enfrentam nas filas de adoção. São vidas marcadas, desde cedo, pelo descaso, pela solidão e por um racismo que insiste em lhes negar o direito de sonhar, de pertencer, de simplesmente ser criança. O sofrimento delas não é exceção — é regra em uma sociedade que ainda escolhe quem merece cuidado.
Pensar a adoção com centralidade na questão étnico-racial é mais que uma exigência ética, é um passo concreto para romper padrões históricos de exclusão. É reconhecer que a cor da criança importa, e muito, na forma como ela é acolhida, tratada, educada e adotada.
A adoção étnico-racial é, nesse contexto, um ato político, que reafirma que o direito à convivência familiar e comunitária deve ser garantido a todas as crianças, sem que a cor da pele determine o seu destino. 25 de maio, Dia da Adoção e da África, precisa ser sinônimo de reflexão e resistência, não omissão; dia de construir e contar uma nova história.
Nesse sentido, é imprescindível ampliar o debate público, oferecer formações antirracistas para pretendentes e equipes técnicas à adoção e fomentar o protagonismo negro na construção de narrativas sobre família, infância e afeto. Pensar as infâncias negras na adoção é olhar para o espelho da nossa história e escolher fazer diferente. É romper com o silêncio confortável da “neutralidade” e da “negação” e assumir, com coragem, que cor importa. Importa porque o racismo ainda estrutura vidas, oportunidades e afetos.
É hora de todos nós – famílias, escolas, profissionais da justiça, mídia, igrejas, movimentos sociais, pretendentes à adoção – assumirmos nosso papel na construção de um país onde toda criança, sem exceção, seja vista, amada e respeitada em sua plenitude.
Com a licença poética da música 14 de maio, esperançamos que nossos meninos e meninas tenham, em um futuro próximo, ao menos o direito de ser crianças.
“Repare que é o maior prazer, bom pra mim, bom pra você”. “Estou de olho aberto”. Mas “olha moço, fique esperto” que eu ainda sou menino!
* Delina Santos Azevedo – Diretora Pedagogica do Instituto Juristas Negras. É mulher negra, mãe solo, umbandista. Doutoranda em Estudos Étnicos e Africanos pela Faculdade de Filosofia da UFBA. Mestre em Direito Público pela Faculdade de Direito da UFBA e graduada em Direito pela Faculdade Ruy Barbosa. É também servidora do Ministério Público do Estado da Bahia, atuando na área ambiental há 19 anos. Denise Ferreira – Assistente Social do TJBA, Doutoranda em Estudos Étnicos e Africanos (UFBA), Mestre em Educação pela UFAL, Especialista em Políticas Sociais pela UNB, Especialista em Gestão Pública SENAI/CIMATEC, Docente Universitária, Autora, Palestrante, Formadora de Formadores (FOFO/ENFAM). Membro do Instituto Juristas Negras (IJN). Pesquisadora da adoção Étino-racial numa perspectiva Antirracista e idealizadora do conceito adoção étnico-racial e do perfil @soudeniseferreira.
Foto: imagem gerada por inteligência artificial.
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