O filme Criadas, primeiro longa-metragem da cineasta Carol Rodrigues, estreia no Festival do Rio abordando as marcas do colorismo e os resquícios da relação entre patroas e empregadas domésticas que ainda ecoam no Brasil. O drama de realismo fantástico, estrelado por Mawusi Tulani e Ana Flávia Cavalcanti, revela feridas históricas e afetivas de duas primas negras criadas sob o mesmo teto, mas em condições muito distintas.
A história começa com a imagem do quadro “A Redenção de Cam”, de Modesto Brocos, em chamas, um símbolo do mito da democracia racial brasileira. O efeito reverso do fogo que reconstitui a pintura anuncia o tom do filme: um mergulho nas contradições e nas memórias apagadas. Sandra, engenheira, retorna à casa da infância em busca de fotos da mãe, que trabalhava ali como empregada, e reencontra Mariana, sua prima, agora uma chef de cozinha bem-sucedida. Esse reencontro desperta fantasmas do passado e questiona as fronteiras entre afeto e hierarquia social.
À medida que as primas convivem novamente, forças sobrenaturais surgem na casa, como manifestações das dores herdadas da escravidão. As versões infantis das personagens, vividas por Vitória Marques Rodrigues e Alice de Jesus Feitosa, reforçam o contraste de realidades entre as duas meninas criadas sob o mesmo teto, mas com liberdades desiguais. A presença de Raquel, interpretada pela atriz angolana Rudimira Fula, acrescenta um olhar afrodiaspórico e contemporâneo, ao representar a mulher negra imigrante que tenta sobreviver dignamente em um espaço ainda marcado por desigualdades.
Mais do que um drama familiar, Criadas é um retrato poético e político sobre o peso das heranças coloniais e o impacto do colorismo nas relações pessoais e profissionais. O filme evidencia como a ascensão social de pessoas negras ainda é atravessada por barreiras invisíveis e por um senso de responsabilidade ancestral. Em tom de homenagem, Carol dedica o filme à avó, Dona Esméria, cuja trajetória inspirou a narrativa e cuja memória permeia toda a obra.
Com produção de Julia Zakia e distribuição da Vitrine Filmes, Criadas nasce de um processo colaborativo e afetivo entre mulheres negras, que também se reflete nos bastidores. Mais de 80% da equipe é formada por profissionais negras e 75% por mulheres e pessoas LGBTQIAP+, reafirmando o compromisso da diretora com um cinema menos hierárquico e mais diverso. “O filme é sobre as contradições da minha própria família, mas também sobre o país que herdamos”, afirma Carol.
Criadas é, portanto, um encontro entre passado e presente, entre o real e o sobrenatural, entre o amor e a dor. Ao revisitar memórias familiares e feridas históricas, Carol Rodrigues entrega um filme de beleza visual, densidade emocional e urgência política, um espelho das complexas camadas da identidade negra no Brasil contemporâneo.