Democracia, Política e Identitarismo

Todos sabem que foi nos Governos do Presidente Lula que as pautas sociais, em particular as lutas de promoção da igualdade racial e de gênero, ganharam a atenção devida, assim como tiveram avanços consideráveis. Para avivar a memória dos incautos, lembro que foi nesse período que aprovamos a Lei 10.639/2003 (que introduziu na grade curricular do ensino fundamental a História da África e da Cultura Afro-brasileira), o Decreto 4887/2003 (que regulamenta o reconhecimento e titulação das terras remanescentes de quilombos), as Cotas Raciais que promoveu a inclusão de negros/as no ensino superior brasileiro e a Lei Maria da Penha ((11.340/2006), que contou com o apoio incondicional do Governo Lula, além de um sem número de ações, seminários, debates e iniciativas em prol do desenvolvimento das lutas de gênero e raça no país. 

Portanto, nenhum militante minimamente responsável poderá acusar o Presidente Lula de não ter compromissos com essas pautas ou de ter mitigado a sua importância. Mas, como a política não é feita de linha reta e depende em primeiro lugar do grau de desenvolvimento democrático de uma nação e em segundo lugar da correlação de forças existentes na sociedade para que seus avanços se consolidem, vivemos no momento atual, um grande desafio: raça e gênero são ou devem ser as únicas dimensões a serem levadas em consideração na ocupação dos espaços políticos de poder? 

O Presidente Lula, corretamente, acha que não. E há razões suficientes para esta posição. Em primeiro lugar, tem ocorrido em vários setores da sociedade um equívoco primário, que é o de imaginar que as lutas identitárias podem suprimir ou dispensar a luta democrática. Como se fosse possível ter avanços nessas pautas em espaços onde a democracia não esteja presente. Em segundo lugar, outro erro crasso é o de não saber avaliar a correlação de forças existentes hoje no país e imaginar que apenas a vontade ou a justeza da causa garantirá a vitória. 

É sempre bom lembrar que vencemos as últimas eleições com um pouco mais de 1% de votos e que por pouco, muito pouco, não tivemos um golpe de estado no país, conforme tem revelado a delação premiada do Coronel Cid. Não fosse a opção sensata de parte das Forças Armadas e provavelmente eu não estaria escrevendo esse artigo aqui na Revista Raça. Os setores conservadores, liderados pela extrema direita continuam organizados e ativos no país. E que para o Presidente Lula governar com possibilidades mínimas de atender ao seu programa de governo está tendo que fazer acordos, negociar e ceder espaços aos setores conservadores da sociedade, exatamente por não ter força política suficiente para enfrenta-los. 

O deslize cometido pela assessora do Ministério da Igualdade Racial, que seduzida pelos holofotes da lacração, produziu uma fala xenofóbica e discriminatória contra uma torcida de um time de futebol, diz bem da delicadeza política que estamos vivendo e da fragilidade política do radicalismo identitário.  O impacto e a reação da maioria da sociedade brasileira foi tão forte, que a mesma não durou sequer 24h horas no cargo, após sua fala.  Isto porque, o Governo percebeu a gravidade do erro cometido, o estrago que faria nas lutas pela promoção das igualdades e no próprio Governo, caso não demonstrasse claramente a sua discordância. 

Portanto, não podemos abstrair dessa realidade concretaquando fazemos nossas propostas ou reivindicamos nossas questões. Mais do que as dimensões de gênero e raça, precisamos no Supremo Tribunal Federal, alguém que tenha capacidade de não apenas decidir lastreado nos ditames democráticos, mas também de ampliar os espaços políticos na sociedade para o convencimento de que a democracia é o único caminho possível para que o país avance. E claro, que tenha compromisso com as lutas pela promoção da igualdade no campo da raça e do gênero, mas isso não pode ser, no momento atual, prerrogativa exclusiva de negros/as ou das mulheres, mas sim de qualquer um/a democrata. 

Toca a zabumba que a terra é nossa!

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Mestre em Cultura e Sociedade pela Ufba. Ex-presidente da Fundação Palmares, atualmente é presidente da Fundação Pedro Calmon - Secretaria de Cultura do Estado da Bahia.

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