Diretora do Fejunes denuncia racismo em escola

“O teu cabelo nem passa pente, sua feia”, teria sido o tipo de insulto dito pelo rapaz, que foi seguido por outros colegas que gritavam a Natalia que ela tem “o cabelo duro”.

Um cotidiano escolar de atitudes preconceituosas proferidas por colegas e a própria equipe pedagógica. Essa é a realidade de inúmeros estudantes que sofrem racismo, homofobia e gordofobia em diversas escolas capixabas. 

Um desses casos, relatado a Século Diário, está em curso na Escola Estadual de Ensino Fundamental e Médio (EEEFM) Aflordízio Carvalho da Silva, localizada em Itararé, um dos bairros a compor o Território do Bem, em Vitória. A vítima é Natalia Heloisa, uma jovem preta de 18 anos, matriculada no segundo ano do Ensino Médio, diretora do Fórum Estadual de Juventude Negra do Espírito Santo (Fejunes).

A mãe da moça, a advogada popular quilombola Josi Santos, conta que a escolha por uma escola do Território foi da própria filha que, nos últimos anos, estudava em bairros mais centrais da cidade. “Ela disse que queria ficar mais perto de jovens que, como ela, estão na militância da juventude negra. Então eu aceitei”.

Na nova escola, a família tem testemunhado diversos casos de preconceito sofridos por estudantes, até que na última sexta-feira (6), se viram alvo do problema, quando Natalia foi insultada por um rapaz no momento em que estava no pátio com outros colegas, todos muito alegres e entusiasmados, aguardando o momento de apresentarem uma dança em uma disciplina eletiva. “Ele se aproximou dela e disse que ela parecia ‘uma cachorra no cio”, relata a mãe. 

Em resposta, Josi diz que a jovem desdenhou, dizendo que não estava no cio, só estava alegre porque iria se apresentar na aula com os amigos e que não precisa estar no cio para namorar alguém, pois tinha muitos pretendentes e sabia o momento certo de fazer isso. Inflamado, o agressor começou então a chamá-la de feia e ainda mostrou no celular uma foto de uma moça branca de cabelos lisos e olhos claros, dizendo que aquela sim era exemplo de mulher bonita, com cabelo que pode passar o pente. “O teu cabelo nem passa pente, sua feia”, teria sido o tipo de insulto dito pelo rapaz, que foi seguido por outros colegas que gritavam a Natalia que ela tem “o cabelo duro”.

A discussão continuou, conta, e, sentindo-se humilhada, Natalia saiu de perto do agressor, muito nervosa. No trajeto, Josi diz que a filha esbarrou em uma colega que a tem por desafeto e que, irritada, a “chamou para a briga”. As duas demonstraram um início de embate físico, que foi contido pelos colegas. Um coordenador da escola chegou e ameaçou chamar a polícia, cessando então o tumulto. 

Durante o final de semana, mãe e filha viajaram juntas para o Território Quilombola do Sapê do Norte, entre Conceição da Barra e São Mateus, no norte do Estado, e participaram de uma reunião da Comissão Quilombola. “Ela ainda estava muito abalada. Preferi que ela viajasse comigo, pudesse ficar ‘entre os nossos’ e participar da reunião da Comissão Quilombola, conhecer mais a nossa luta, as nossas causas, do que ficar sozinha em casa”, conta Josi.

Impedida de entrar

De volta da viagem nessa segunda-feira (9), Natalia só retornou à escola nesta terça-feira (10), sendo levada pela mãe, que ainda estava atenta ao seu estado emocional, até o portão da escola, junto com outro colega. Por coincidência, conta Josi, o agressor da filha também estava no portão. “Falei com ele para pedir aos pais que nomeassem um advogado, porque eu teria uma reunião na escola sobre o ocorrido e provavelmente eles iriam precisar de um profissional para defendê-los. Sou a favor da paridade de armas jurídicas”, relata a advogada popular quilombola. 

Josi conta que, ao deixar a filha na entrada, tinha intenção de retornar para a escola ainda pela manhã para participar da reunião marcada. Logo que saiu do portão, recebeu um telefonema da filha dizendo que uma coordenadora – Lana Maria – não a deixava entrar na sala de aula. Em seguida, a coordenadora ligou confirmando a reunião, porém com atraso de meia hora, e que somente mediante a sua presença, iria entrar em sala.

Surpresa, Josi perguntou se também haviam impedido o agressor de entrar. “Ela me disse que já tinha conversado com a família dele e que já estava tudo certo. E que só depois de conversar pessoalmente comigo que iria deixar da minha filha estudar. Acionei a polícia e fiquei na porta da escola aguardando”, relata. 

Quando a viatura chegou, a entrada da estudante já havia sido autorizada. Porém, diante de mais uma humilhação – “o agressor entrou na escola livremente e debochando dela” – Natalia começou a sofrer uma crise de ansiedade dentro da sala de aula. “Eu pedi ao porteiro que me deixasse entrar, mas ele disse que eu tinha que aguardar todos os protocolos. Então fui mais enérgica e consegui que abrissem. Cheguei na sala e ela estava em prantos, num estado lastimável. Peguei minha filha pela mão e tirei ela dali. Foi minha reação como mãe, diante daquela situação absurda”. 

A reunião com a coordenação da escola está reagendada para a manhã desta quarta-feira (11). Enquanto isso, Josi já acionou a Gerência de Educação do Campo, Indígena e Quilombola da Secretaria de Estado da Educação (Geciq/Sedu), recebendo como orientação da gerente, Valquíria Santos Silva, registrar denúncia na Ouvidoria da Sedu. “Eu esperava um acolhimento maior, mas ela se mostrou uma mulher preta que não representa os anseios dos estudantes e das mães de estudantes pretos”, lamenta. 

Educação antirracista

Josi conta que recebeu orientação de colegas advogados para, antes da Ouvidoria. Formalizar uma denúncia diretamente na escola, com cópia para a Superintendência Regional de Educação (SRE) de Carapina. Uma denúncia coletiva, ressalta, reunindo relatos de outros estudantes que também já sofreram atos de racismo, homofobia ou gordofobia. “Qualquer aluno que passou por violências como essas, pode me procurar, que estou aqui para representá-los juridicamente. Há muito tempo que ouço queixas de vários alunos e sempre oriento que falem com os pais para que eles acionem a escola. Mas eles têm medo de represálias”.

A advogada popular quilombola cita a Comissão de Igualdade Racial da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB/ES) e o Ministério Público que devem se envolver no caso. “Não só como forma de punição, mas também de educação, de formação, de estudantes e dos profissionais das escolas. Para erradicar o racismo, tem que haver uma educação antirracista”, defende. 

Acompanhamento psicológico é outra ferramenta importante, salienta Josi Santos, enaltecendo o trabalho do Coletivo Antirracista da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes). Ela faz atendimento psicológico às pessoas do Território do Bem nas instalações da Paróquia Madre Teresa de Calcutá, que é dirigida pelo padre Kelder Brandão. 

“Estamos a três dias da data que se comemora a fajuta libertação dos escravos [13 de maio, data da assinatura da Lei Áurea, pela princesa Isabel, em 1888], mas a gente continua sendo vítimas da violência contra nossos corpos pretos”, protesta.

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