Revista Raça Brasil

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Dita como espelho: racismo, representatividade e coragem

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Flavia Cirino

Editora-chefe da revista RAÇA. Jornalista pós-graduada em jornalismo cultural e assessoria de imprensa, com ampla experiência em televisão e impressos. Também atua como relações públicas no universo corporativo e artístico.

Dita, personagem vivida por Jeniffer Nascimento, ultrapassa o papel clássico de mocinha. Em “Êta Mundo Melhor!”, bovela exibida na Globo na faixa das 18h, ela deixa de ser coadjuvante para ocupar o centro da narrativa — não só por demanda dramática, mas por uma urgência social.

Enquanto Dita busca espaço como cantora de rádio e reivindica salário justo, a atriz repete trajetórias parecidas em sua vida real.

De acordo com Jeniffer, muitos obstáculos se manifestam “quando se trata de uma mulher preta nesse lugar”. Ela relatou que enfrentou situações nas quais intermediadores questionavam o valor que ela cobrava, comparando com outras mulheres negras, como se houvesse um padrão implícito que limitasse o que uma atriz preta poderia exigir.

“Não me parou”, diz ela, celebrando o protagonismo como vitória sobre o preconceito.

Um elemento poderoso aparece quando Dita exige respeito profissional, quando recusa ofertas sem aumento salarial ou condições justas. Esse gesto na trama dialoga com o que Jeniffer vive: salários desproporcionais e propostas condicionadas por cor de pele. É um espelho que incomoda, que provoca reflexão — no público, na mídia, nos bastidores.

Jeniffer também falou sobre cenas evitadas porque “não fazia sentido” que Dita pedisse desculpas após sofrer racismo. Ela contribuiu para construir uma narrativa na qual a personagem negra não se coloca submissa diante da opressão, mas reivindica dignidade. Isso mostra responsabilidade da produção em tratar o tema com justiça, não com mais invisibilidade.

Além de representação na trama, Dita espelha histórias familiares. Jeniffer conta que a coragem de sua avó materna, que deixou o interior da Bahia ainda jovem em busca de uma vida sem opressão, está presente na construção de Dita. “A Dita conta um pouco da história da minha própria família.” Essa identificação torna a atuação mais visceral — Jeniffer interpreta menos uma personagem e mais uma ancestralidade verbalizada.

 

Por que esse desempenho impacta (e encanta)

  1. Entrega ao vivo: cantar ao vivo em cenas dá autenticidade. Cada nota, cada frase, cada gesto soa mais próximo do público. Isso contribui para engajar quem vê; emociona. Gera comoção — como no relato de uma telespectadora: a mãe com Alzheimer que voltou a cantar ao ouvir Dita.
  2. Camadas de vulnerabilidade e força: Dita não é super-heroína neutra; ela sofre, hesita, mas insiste. Jeniffer permite que essas camadas apareçam — foge do esterótipo da mulher negra invulnerável, sem alma nem falha. Faz a gente torcer, sofrer, festejar.
  3. Simbolismo de representatividade negra real: ela vê, conforme ela mesma falou, com satisfação que protagonismo preto “é normal agora”. Que há múltiplas protagonistas negras, não apenas uma por novela, não apenas figurantes. Isso muda o imaginário de quem cresce vendo, acreditando que aquele espaço pode ser seu.
  4. Uso crítico de temas raciais: o texto da novela, por meio da personagem, não evita o desconforto. Discutir cena racista, discutir apropriação de voz, discutir pagar menos por ser preta — tudo isso torna a trama mais relevante, mais contemporânea, mais necessária. Jeniffer participa desse debate.
  5. Mistura de tempo real e ficção: revisitar Dita quase uma década depois, reinterpretar aquela moça que era serviçal no interior — agora cantora, protagonista — conjuga memória afetiva e evolução social. E Jeniffer se permite envelhecer no papel, amadurecer, transformar. Isso dá dimensão além da novela: dá algo para a cultura se agarrar.

Jeniffer Nascimento não atua só; ela provoca, questiona, confronta. Sua Dita nos leva a ver erros antigos, nos convida a imaginar novas cenas onde mulheres negras ocupam o palco, ganham o microfone, recebem salário justo, não pedem permissão para existir. Essa entrega tão humana quanto simbólica faz de “Êta Mundo Melhor!” mais do que entretenimento — faz dela um lugar de reverberação social, de emoção verdadeira, de acerto de contas com o que sempre foi silenciado.

 

Essa publicação é fruto de uma parceria especial entre a Revista Raça Brasil e o Fórum Brasil Diverso, evento realizado pela Revista Raça Brasil nos dias 10 e 11 de novembro, que celebra a diversidade, a cultura e a potência da música negra brasileira. Não perca a oportunidade de participar desse encontro transformador — inscreva-se já www.forumbrasildiverso.org

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