Dona das Dores, de Márcia Silveira
Primeiro romance de Márcia Silveira foi vencedor do prêmio Carolina Maria de Jesus e eu tive a alegria de escrever a apresentação.
Apresentação
Eu geralmente acredito nas personagens, em poucas páginas sinto como se elas fossem da minha família. Esta obsessão me leva tão profundamente para dentro das histórias que, por vezes, questiono minha habilidade como resenhista.
Entretanto, não posso negar que este foi o sentimento que me arrebatou logo nas primeiras páginas deste romance de estreia de Márcia Silveira, que narra a caminhada de Maria.
Mulher negra, nordestina, pobre, cheia de sonhos e de pouca audácia, Maria encontra na escrita um divã capaz de suportar o peso da culpa que sente. Uma pessoa que transitou pela vida, ocasionalmente, não se permitindo externar sentimentos de raiva ou indignação gerados pelo abandono, violência, assédio, racismo, pobreza e, principalmente, falta de autoconfiança.
O fato de a personagem narrar sua própria trajetória é o que torna tudo mais intrigante. Mas a quem interessa a história de uma mulher negra, ainda mais quando ela mesma se anuncia quase como alguém sem importância, que vive em um “[…] abismo intransponível entre o sonho e o possível”? Uma cidadã de segunda classe – como poderia dizer Buchi Emecheta ou Françoise Ega?
Maria, dona de dores, desejos, sonhos e desilusões. Uma vida comum, quase banal que se faz única pela capacidade de registrar de forma habilidosa suas experiências, com simplicidade e crueza em um texto direto, com urgência, detalhes e emoções que colocam ela, uma personagem inventada, ao lado de personalidades notáveis como Maria Firmina dos Reis, que abriu picada no mato para que Carolina Maria de Jesus e tantas outras pudessem pisar e construir uma estrada pavimentada, que certamente levou Márcia Silveira a criar em pensamento e palavras, Dona das Dores.
Faz isso com tanta destreza, que torna interessante a cronografia de uma mulher negra, empregada doméstica, mãe, esposa, aprisionada nos costumes de uma época, desafiadora, conformada, contraditória, sensível e, sobretudo, corajosa, ainda que muitas vezes ela duvide disso.
A personagem tem tanto sentimento que tive dúvidas, por mais de uma vez, se Márcia Silveira a teria inventado. Fiquei na esperança de que ela fosse real. Quase me convenci de sua existência ao ler o bem elaborado epílogo, que traz um desfecho necessário.
O primeiro romance de Márcia Silveira, vencedor do Prêmio Carolina Maria de Jesus de Literatura (2023), se insere numa avalanche de histórias sobre mulheres brasileiras, personagens reais e inventadas que precisam existir e se comunicar com o mundo atual, de modo que futuros mais prósperos possam ser sonhados, prospectados e, de fato, criados e desfrutados por todas as pessoas deste planeta.
É fácil de acreditar. É bom de ler e é incrível e confortante saber que, apesar das dores, um mundo melhor, onde mulheres negras possam existir, pode ser construído, ainda que apenas na ficção.
Dona das dores, de Márcia Silveira
isbn: 978-65-5900-803-2
páginas: 152 páginas
ano de edição: 2024
edição: 1ª
R$ 52,00
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