A morte de Jacira Roque de Oliveira, a Dona Jacira, nesta segunda-feira (28), aos 60 anos, encerra uma trajetória marcada por lutas, resiliência e tardio florescimento artístico. Mãe do rapper Emicida e do cantor Evandro Fióti, ela era muito mais do que a genitora de artistas consagrados – era ela própria uma criadora, uma mulher que transformou dor em expressão estética e existência em legado. Hospitalizada na capital paulista, sua morte foi confirmada por amigos próximos, embora a causa específica não tenha sido divulgada. Sabia-se, contudo, de sua longa batalha contra o lúpus, doença que a acompanhava há mais de 20 anos, exigindo sessões regulares de hemodiálise.
Nascida e criada na periferia da zona norte de São Paulo, Dona Jacira carregava nas veias a história de tantas mulheres negras brasileiras: infância marcada por maus-tratos, casamento precoce, viuvez e a árdua tarefa de criar quatro filhos sozinha, em meio às privações econômicas típicas das classes populares. O que poderia ter sido apenas mais uma história de sobrevivência tornou-se, em suas mãos, matéria-prima para criação. Seus últimos anos foram dedicados à redescoberta de suas raízes ancestrais e à produção artística, numa espécie de renascimento criativo que desafiava tanto as limitações impostas pela doença quanto os estereótipos sobre o lugar social de mulheres como ela.
A relação de Dona Jacira com a fama dos filhos era complexa e reveladora. Enquanto Emicida e Fióti conquistavam o Brasil com suas artes, ela permanecia como uma figura querida pelos fãs, mas cuja própria produção criativa raramente ocupava os holofotes. Essa dinâmica espelha um fenômeno cultural mais amplo: como a sociedade tende a celebrar os frutos (no caso, os artistas consagrados) enquanto ignora o solo fértil que os nutriu (as mães, as mulheres, as bases familiares e comunitárias). Seus “saberes e fazeres”, expressão que adotava para definir sua produção, falavam justamente dessa sabedoria cotidiana, desses conhecimentos que raramente ganham status de arte, mas que sustentam toda uma cultura.
A produção artística tardia de Dona Jacira – que incluía trabalhos como artista plástica e escritora – carregava a marca indelével de suas experiências. Seus trabalhos, ainda que menos conhecidos do grande público, eram profundamente autobiográficos, tecendo conexões entre sua história pessoal, a memória ancestral e as tradições culturais afro-brasileiras. Nesse sentido, ela representava um tipo específico de intelectual orgânica, cujo conhecimento não vinha das academias, mas da vida concreta, das cicatrizes e das superações. Sua arte era, em última instância, um ato político – a afirmação de que mulheres como ela tinham não apenas o direito de existir, mas de criar e ser lembradas.
A morte de Dona Jacira ocorre num momento peculiar da cultura brasileira, quando justamente se discute com mais força a necessidade de reconhecer as matrizes populares e periféricas da produção artística nacional. Sua vida parece ecoar essas discussões: quantas outras criadoras talentosas permanecem à sombra, seu potencial nunca plenamente realizado por conta das circunstâncias sociais? Quantas expressões artísticas são perdidas porque suas portadoras estão ocupadas demais sobrevivendo? Essas perguntas tornam sua trajetória particularmente significativa – não apenas como história individual, mas como sintoma de um contexto cultural mais amplo.
O legado de Dona Jacira ultrapassa em muito os limites de sua família. Ela deixa um exemplo de como a criação artística pode emergir mesmo nas condições mais adversas, e como a resistência cotidiana pode, ela própria, tornar-se uma forma de arte. Nas palavras de seu filho Emicida, ela era “a pessoa mais forte que conheceu” – e essa força agora se transforma em memória e inspiração. Sua história permanece como um testemunho do poder transformador da arte e como um lembrete das inúmeras vozes que ainda precisam ser ouvidas na cultura brasileira. Além dos quatro filhos – Emicida, Evandro Fióti, Kátia e Katiane -, ela deixa uma lição sobre resiliência e a capacidade humana de criar beleza a partir da dor.