E de onde são os seus parentes da África?
Um dos meios de expressão das minhas inquietações é a linguagem da moda e como mulher negra e criadora, tenho inevitavelmente pensado sobre a centralidade do corpo e consequentemente da aparência como uma fronteira dos padrões impostos socialmente, desconstruindo a idéia de sociedade como entidade autônoma, interpretando a potência da criatividade a partir do campo das batalhas discursivas e das relações de poder características desse universo, tentando compreender a potência dessa linguagem como forma de contribuir para se reinventar e ressignificar os estigmas atribuídos às mulheres negras no Brasil.
O modo como sou percebida no cotidiano não passa por interferência da minha formação acadêmica, do meu currículo como artista ou da minha militância, sou apenas mais uma mulher negra e como tal sempre sou vista como inferior. Previamente não importa “quem eu sou” e assim as situações de racismo se desenrolam nos momentos mais comuns da vida real, na cidade mais negra fora do continente africano: Salvador – BA.
Pensando raça como signo, me pergunto como e quando poderemos construir uma associação diferente da subalternidade? Como estamos lendo a paisagem humana ao nosso redor e naturalizando as assimetrias que foram construídas e que são cotidianamente reiteradas com tanta violência?
Nas entrevistas sempre me perguntam quais são os traços marcantes da cultura afro-baiana e o que a difere da cultura afrodescendente do resto do mundo? Não é fácil responder, mas depois de uma experiência marcante num estúdio de televisão na França, coleciono as pistas para uma boa conversa sobre o assunto.
Quando a âncora do jornal perguntou: – E de onde são os seus parentes da África? Afirmei que não sabia e ela muito surpresa me falou que visitava sua família africana anualmente e que não entendia a minha resposta. Ela, mulher negra e filha de imigrantes, não conseguia compreender como responderia à tal questão uma descendente de pessoas africanas que foram escravizadas. Também muito surpresa com sua reação, expliquei que essa era a diferença nas américas, cujo fato resultou no total apagamento da nossa origem, memória e história.
Assim, ainda é indispensável lembrar nessas conversas que jamais saberei de que país ou grupo étnico daquele enorme continente africano vem a minha ancestralidade e que a idéia de subalternidade compulsoriamente atrelada à minha imagem me proporciona uma existência específica. Não preciso viajar tão longe para me deparar com perguntas como essa, uma vez que surgem de pessoas próximas e muito “queridas” a tentativa de personalizar o debate sobre raça para negar a existência do racismo.
Uma nova e dissonante trajetória como mulher negra tem se constituído por meio desses trânsitos que experiencio por meio do meu trabalho criativo e que problematizo como ModAtivista. Cada experiência de diálogo com outras mulheres da diáspora africana me situa diante da brutalidade do produto do racismo no Brasil, me fazendo analisar como esse contexto nos faz trabalhar na construção de novas narrativas. Não poderei detalhar a minha origem para além das pistas que resistiram com o passar dos anos na cidade massivamente negra onde cresci no interior da Bahia ou dentre as pessoas com as quais dialogo para compartilhar os processos criativos e outras formas que vou experimentando para registrar nossas demandas e de maneira diferente, tecer esses fios.
CAROL BARRETO
Mulher Negra, Feminista e como Designer de Moda Autoral elabora produtos e imagens de moda a partir de reflexões sobre as relações étnico-raciais e de gênero. Professora Adjunta do Bacharelado em Estudos de Gênero e Diversidade – FFCH – UFBA e Doutoranda no Programa Multidisciplinar de Pós-Graduação em Cultura e Sociedade – IHAC – UFBA, pesquisa a relação entre Moda e Ativismo Político
*Este artigo reflete as opiniões do autor. A Revista Raça não se responsabiliza e não pode ser responsabilizada pelos conceitos ou opiniões de nossos colunistas