É possível enxergar além da culpa

*Fábio Pereira 

Eu ficaria feliz se falássemos mais sobre necessidades humanas universais e como elas guiam nossas ações e pedidos, dos mais triviais aos mais atípicos. Assim, mais pessoas saberiam que todos temos as mesmas necessidades e o que nos difere é como aprendemos a satisfazê-las. Como seria maravilhoso fazer pedidos aos outros e recebê-los de maneira mais compassiva, ou seja, levando em conta nossos interesses comuns de segurança, respeito, valorização, dentre tantas outros. 

A Comunicação Não-Violenta (CNV) propõe que quando nossas necessidades não são atendidas a gente treine compreender mais vezes do que condenar. Compreender não é concordar e nem permitir que violências se repitam. Compreender é dar uma chance de, sempre que tivermos espaço para o diálogo e nunca legitimando agressões, contribuir com propostas que busquem ganhos mútuos em vez de criar um jogo cotidiano de perde-ganha. A gente vai conseguir sempre? Não. Mas a gente pode aprender. Sendo assim, ao lidar com as nossas impossibilidades podemos escolher nos acolher mais e olhar além do tradicional impulso de culpar. 

Na obra a linguagem da paz em um mundo de conflitos da editora Palas Athena, página 74, está anotada a seguinte declaração de Marshall Rosenberg, sistematizador da CNV: “Infelizmente é assim que muitas pessoas se educam. Educam-se da mesma forma que nos educaram quando fazíamos coisas que desagradaram as figuras de autoridade. Elas nos culpavam e nos puniam, e nós internalizamos isso. Como resultado, é comum educar-se através da culpa, vergonha e outros tipos de táticas violentas e coercitivas”.

E ele complementa: “Acredito que boa parte do tempo nos sentimos deprimidos não porque estamos doentes ou porque há algo errado conosco, mas porque nos ensinaram a nos educarmos com julgamentos moralistas, a nos culparmos”.  (p. 75)

Separe pessoas de problemas 

A culpa é útil pois ela diz que a gente agiu de um jeito que não gostaria. Após esse alerta, o que de mais solidário podemos fazer conosco mesmo é entender quais necessidades queríamos atender com o ato infeliz e quais deixamos de atender por causa dessa primeira conduta. Após entender isso, buscamos mudar as atitudes sem depender que o outro nos aprove. Podemos decidir não entregar aos outros um poder que é só nosso: o poder de conceber a nossa autoimagem. Eu, pessoalmente, separo os conceitos de culpa e responsabilidade quando preciso lidar com meus tropeços. Eis as definições que constam do dicionário online Michaelis: 

“CULPA (Psicologia): Consciência penosa por ter falhado no cumprimento de uma norma social ou moral.”

“RESPONSABILIDADE (Filosofia)a noção de que o indivíduo deve reconhecer os danos por ele causados, aceitando suas consequências”

Eu escolho me responsabilizar e não me culpar. Por definição, apenas sentir culpa tende a nos paralisar. Já a  responsabilidade tende a nos mobilizar. Culpado eu generalizo (tudo foi culpa minha ou tudo foi culpa do outro). Responsável eu enxergo que eu domino (às vezes mais, às vezes menos) o que penso, sinto e faço. E ao outro cabe se responsabilizar pelo que pensa, sente e faz. Apenas me culpando eu posso me achar incapaz, defeituoso, inadequado, o que, admitamos, tem ajudado pouco na pacificação social. Sendo responsável por aquilo que estava no meu controle eu tenho chances de me colocar na condição de reconstruir, sempre na medida do possível, aquilo que minha atitude prejudicou.

Por isso, seguir os quatro passos da CNV é tão libertador. Com essa forma de pensar as nossas relações preferimos sempre estabelecer conexão conosco e com o próximo, mirando aquilo que nos une (as necessidades que todos almejamos atender) e lidando de maneira mais propositiva com os problemas que nos separam. Com isso, estabelecemos elos potencialmente mais capazes de promover resolução de conflitos e não a sua escalada. 

O Projeto de Negociação de Harvard, referência mundial inclusive na esfera diplomática, nos legou uma lição cuja linguagem a meu ver produz um entendimento bem nítido para o mundo em que vivemos: “Seja duro com o problema, mas afável com as pessoas”. Ou seja, separar a pessoa do problema nos estimula a buscar caminhos facilitadores para além da atribuição de culpa fazendo com que os indivíduos sejam estimulados a serem parte da solução. É nisso que a CNV nos faz acreditar e sua aplicação diária nos prova ser possível. 

*Fábio Pereira é jornalista, mediador de conflitos e facilitador de Comunicação Não-Violenta (CNV). Integra a ONG CNV em Rede e coordena a Câmara de Mediação Pacific. Instagram: @fabio.dialogos

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