Elas chegaram ao poder

O ano de 2020 já se tornou um ano histórico para a comunidade negra, em especial, as mulheres. Nas eleições municipais de 2020, segundo o TSE, cerca de 267 mil candidatos (48,1%) se disseram brancos, 219 mil (39,4%) se declararam pardos e 58 mil (10,5%) afirmaram ser pretos.

 Em 25 agosto o Tribunal Superior Eleitoral determinou que os partidos deveriam alocar, proporcionalmente, recursos do Fundo Eleitoral e o tempo de propaganda eleitoral gratuita de rádio e TV ao total de candidatos pardos e pretos.

Vale ressaltar que tudo nasce do questionamento feito pela deputada federal, Benedita da Silva (PT-RJ). A congressista sugeriu que fosse destinado às candidaturas negras 50% do total do financiamento eleitoral e também do tempo de propaganda, replicando o que acontece com as candidaturas de mulheres. Tese sustentada com base em pesquisa do IBGE, onde foi revelado que a população brasileira é constituída por 55% de negros, autodeclarados.

“Com atraso, mas não tarde demais, estamos empurrando a história do Brasil na direção da justiça racial” (Luís Roberto Barroso, presidente do TSE).

O Censo de 2010 traz uma realidade escamoteada pelo manto do machismo/racismo, que estruturara a sociedade brasileira: 25,38% da população de mulheres negras, ou como deseja o censo, pretas e pardas, mais que ¼ da população, ou um número maior que 48.000.000 de pessoas. Esse número não reflete a participação política das mulheres negras nas esferas do poder público e nas tomadas de decisão.

Fato é que a mulher sofre da invisibilidade real pela questão racial e de gênero; ser mulher em qualquer lugar do mundo é uma árdua tarefa, ser mulher e negra no Brasil é uma posição de tamanha crueldade que só com a banalização das dores pode ser passada despercebida. Em contrapartida, essas mesmas mulheres são esteio da sociedade e fundamentais na transmissão de saberes culturais e religiosos da cultura afro-brasileira.

“As mulheres negras sempre foram os sustentáculos dos movimentos, as mulheres sempre foram as organizadoras primárias dos movimentos sociais” (Ângela Davis, filósofa).

No dia 15 de novembro de 2020 um Brasil incrédulo via um dado novo no resultado das eleições municipais: em todas as regiões foram eleitas mulheres negras para câmaras municipais. Confirmando o novo cenário, Suelen Rosim (Patriota) foi aclamada prefeita de Bauru-RJ, em segundo turno no dia 29/11, com aproximadamente 60% dos votos.

Para a maioria esse fato parece de pouca importância, todavia, vale ressaltar que só a partir de 24 de fevereiro de 1932, quando foi instituído o Código Eleitoral Brasileiro, as brasileiras conquistaram o direito de votar e serem votadas. O recorte de gênero não alcançou as questões raciais, ademais o pouco mais de cinquenta anos pós-abolição não determinou para negros e negras mudanças na condição socioeconômica e longe estavam de participação política plena.

Vocês conhecem Antonieta de Barros e Ana Lúcia Martins; caso esses dois nomes não representem nada, a partir de agora farão parte da sua memória. São mulheres, negras, catarinenses e poderosas. Antonieta de Barros, nascida em 11 de julho de 1901, em Florianópolis, foi a primeira mulher negra eleita no Brasil. Ana Lúcia Martins sagrou-se em 2020 a primeira mulher negra eleita na cidade de Joinville. Vale lembrar que o estado de Santa Catarina teve intensificado povoamento com a imigração europeia no século XIX, sobressaindo os colonos alemães, italianos, portugueses e, em menor escala, os eslavos. Termos a primeira negra eleita no país numa região distante da região colonial açucareira povoada pelos negros e negras da diáspora, faz desse feito um ato histórico.

A cidade do Salvador-BA, totalmente diferente de Joinville, é considerada a cidade mais negra do Brasil, e reelegeu vereadora a baiana de Feira de Santana, Ireuda Silva (REPUBLICANOS), quarta mais votada com 12.098 votos. Pode parecer óbvia a vitória frente ao traço racial da cidade, mas a verdade é outra. Uma das principais lutas da vereadora é aumentar o número de negros no legislativo. Na última eleição apenas 38,69% se declararam negros, mesmo assim houve um considerável aumento, em 2016 apenas 374 se identificaram como tal e o ano passado foram 621 candidatos. Neste cenário termos uma mulher negra reeleita é uma simbólica vitória.

“O racismo está na vida de toda mulher negra, e isso gera grandes dificuldades quando fazemos qualquer tentativa de alçar espaços de poder ou até no mercado de trabalho. Nossa capacidade sempre é menosprezada e nossa estética discriminada. Ao longo dos últimos quatro anos, empreendemos uma luta árdua contra o machismo e o racismo, e a população de Salvador, majoritariamente negra, abraçou essa causa e nos deu permissão para continuarmos essa luta por mais um mandato” (Ireuda Silva).

Mas o Sul do Brasil tem tradição da luta racial e mulheres representativas, como fora a professora Luiza Bairros, nascida em Porto Alegre, ministra-chefe da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial entre 2011 e 2014.

O Rio Grande do Sul elegeu duas grandes representantes: Karen Santos (PSOL), graduada em Educação Física, a mais votada da cidade de Porto Alegre e Lins Roballo, primeira mulher trans negra eleita no munícipio de São Borja.

Curitiba elegeu com 8.874 votos a primeira mulher negra, Carol Dartora (PT), historiadora e professora da rede pública estadual, 37 anos, sagrou-se a terceira candidata mais votada para ocupar o legislativo da cidade.

Talvez o estado do Rio de Janeiro, com tantos escândalos, não “continua lindo” como nos diz a canção. O estado onde mais se mata em operações militares, onde o negro é sempre o suspeito, estado que subtraiu de nós de forma atroz a socióloga, ativista e vereadora Marielle Franco, esse estado não diminui a determinação das mulheres, ao contrário, serviu de motivação. Na capital carioca elegemos Tainá de Paula (PT), arquiteta e urbanista, ativista das lutas urbanas, especialista em Patrimônio Cultural pela Fundação Oswaldo Cruz e Mestre em Urbanismo pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Em Nova Friburgo, com apenas 26 anos, Maiara Felício (PT) foi a vereadora mais votada, e Niterói deu exemplo de diversidade escolhendo Benny Briolly, mulher preta, travesti, de axé e militante de direitos humanos

“O povo tem voz e agora está no poder”, diz Maiara Felício.

Na capital de São Paulo um inteligente formato foi proposto pelo PSOL, uma Bancada Feminista para ocupar uma das vagas do legislativo. Formado por Silvia Ferraro, Paula Nunes, Carolina Iara, Dafne Sena e Natalia Chaves, o coletivo foi eleito com a proposta de elevar pautas da periferia, de negritudes, de trans e LGBTQIAP+, da saúde da mulher, do veganismo popular e do ecossocialismo.

Fortalecendo a base do PSOL também foram eleitas Luana Alves, psicóloga formada pela USP, especializada em Saúde Coletiva e Atenção Primária, e Erika Hilton, a mulher mais votada e sexta no ranking geral, recorde no Brasil com espetaculares 50.508 votos, negra, trans e tem apenas 27 anos, ela confessa:   

 “A política tradicional não foi feita para pessoas como nós. Mulheres e homens negros, LGBTQIA+, trabalhadoras e desempregadas, defensoras dos direitos humanos, da igualdade social e de mudanças estruturais: nós sempre estivemos à margem das esferas de poder” (Erika Hilton).

No site do TSE, o secretário de Modernização, Gestão Estratégica e Socioambiental, Bruno Cezar Andrade de Souza, informou que em comparação a 2016, o número de prefeitas eleitas passou de 636 para 653 de uma eleição municipal para outra; o de prefeitos negros e prefeitas negras (pardos e pretos) eleitos, de 1.605 para 1.738. O número de câmaras municipais com 50% ou mais de mulheres eleitas passou de 23 para 41 e, com 50% ou mais de negros, passou de 2.170 para 2.254. Diminuiu o número de câmaras de vereadores sem a presença de mulheres: eram 1.295 em 2016, contra 916 em 2020. Também caiu o número de câmaras municipais sem vereadores negros: de 1.043 para 761.

O TSE ainda informa que mesmo sendo mais de 50% do eleitorado brasileiro, ocupamos atualmente o 140º lugar no ranking de representação feminina em cargos públicos eletivos – a classificação abrange uma lista de 193 países. Em média, nos países constantes dessa relação, cerca de 25% dos cargos públicos são ocupados por mulheres. No Brasil, contudo, esse índice se aproximou apenas de 10% nas últimas eleições. Esses dados mostram como cada candidatura de uma mulher negra tem significativa importância.

“A política não é feita e nem pensada para as mulheres negras. A nossa presença incomoda os homens brancos, que sempre usufruíram sozinhos desses espaços de poder. Antes de oficializar a minha candidatura senti um descrédito ou menosprezo quanto à possibilidade da minha eleição. Não era tratada como alguém que tivesse chance. Depois que fui a mais votada da cidade, percebi algumas narrativas que tentavam reduzir o tamanho da nossa vitória” (Dandara Tonantzin).

Dandara Tonantzin (PT) foi a vereadora mais votada em Uberlândia com 5.237 votos. Além de grandes desafios Dandara buscará desenvolver comissões de heteroindentificação para assegurar cotas raciais no acesso ao emprego público e aprimorar a implementação da Lei 10639/2003 sobre ensino da história e da cultura afro-brasileira nas escolas.

Com ela Minas Gerais nos deu Macaé Evaristo (PT) e Iza Lourenço (PSOL), em Belo Horizonte.

Macaé Evaristo foi secretária de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão (Secadi) do Ministério da Educação, e em 2015 assumiu a Secretaria de Educação do estado de Minas Gerais, sendo a primeira mulher negra a ocupar um cargo de primeiro escalão no governo do estado. Em entrevista exclusiva à Raça, Macaé nos fala:  

Vivemos um momento em que o fascismo, o conservadorismo, o negacionismo reforçam os preconceitos de raça e gênero. Mas, por outro lado, mulheres e, especialmente mulheres negras, estão mais organizadas nas lutas e na resistência. Trata-se de um empoderamento crescente, que ganhou ainda mais potência após o assassinato da vereadora Marielle Franco.”

Ainda em Belo Horizonte temos uma gratificante e inusitada candidatura vitoriosa, Iza Loureça (PSOL). E quem é Iza?

“Nasci, cresci e moro na periferia, como a maioria de nós. Tenho 27 anos de vida e uma década de luta na cidade de Belo Horizonte… Hoje sou bilheteira do Metrô-BH e construo o movimento negro com o cursinho popular Consciência Barreiro e a campanha de solidariedade #bhficaemcasa, que atende demandas das mulheres das comunidades durante a pandemia… espero que o legado do nosso mandato para a cidade seja exatamente esse: ser um ponto de apoio àquelas e àqueles que são invisibilizados e estão em luta cotidiana para sobreviver e se organizar nos seus territórios” (Iza Loureça).

Tivemos duas importantes candidaturas negras no Nordeste: em Recife a advogada, historiadora e professora Dani Portela (PSOL), vereadora mais votada com 14.114 votos. E em Campina Grande, na Paraíba, uma mulher se apresenta com uma incrível narrativa de vida e ocupa o legislativo da cidade:

“Sou Jô Oliveira (PC do B), nasci em Campina Grande, filha de Dona Basta, uma mulher negra, trabalhadora doméstica e mãe solo. Desde cedo aprendi a enfrentar o mundo de cabeça erguida e a lutar pelo meu espaço na sociedade. Negra, pobre e filha de trabalhadora doméstica, estudei em escola pública e ingressei no curso de Serviço Social da Universidade Estadual da Paraíba (UEPB), onde me graduei e concluí mestrado na área.”

Não perca as contas!

Em Vitória, no Espírito Santo a assistente social Camila Costa Valadão (PSOL) foi a segunda vereadora mais votada, sendo também a primeira negra a ocupar o cargo.

Em Belém do Pará, Bia Caminha (PT), negra, bissexual, feminista, com 21 anos, é a vereadora mais jovem eleita na cidade.

Fechamos com Edna Sampaio (PT), graduada em Serviço Social (UFMT), mestre em Ciência Política (UFPE) e doutora em Ciências Sociais (PUC/SP). Primeira negra eleita em Cuiabá-MT.

”Posso dizer que para ocupar um lugar neste espaço da política tive sim que enfrentar o machismo e o racismo presentes em toda minha trajetória de mulher negra, sempre ocupando espaços “proibidos” para nós e enfrentando o machismo e o racismo estruturais.  Certamente, esse enfrentamento não termina aqui. 

Nestas eleições municipais as relações foram bem mais tranquilas e apesar da pandemia, conseguimos fazer uma campanha com apoio do partido no âmbito municipal. E nosso eleitorado pôde reafirmar sua identificação com nossas pautas que incluem as questões de gênero, classe, raça, a questão ambiental e a proposta de Mandato Coletivo que estamos construindo. ”

Duas frases foram muito repetidas nesta reportagem: a mais votada; a primeira mulher negra. Caso o leitor leve em conta a representatividade da mulher negra em relação à população de cada município, pode cair num equivoco e pensar  que os números expressam pouco; contudo, se fizer uma análise histórico-contextual perceberá que frente aos obstáculos e desafios, o ano de 2020 se tornou um marco na história racial do país, acendeu o farol que orientará novas empreitadas políticas para o povo negro, ocupação de mulheres negras em cargos eletivos, e a certeza que podemos ser e estar no poder. Essa foi uma luta praticamente solitária das mulheres negras nesse país racista e machista, com sabedoria alcançaram vitórias e traçaram novas formas de conquistas.

A elas nosso muito obrigado!

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