Revista Raça Brasil

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Saúde mental e realities: a experiência de uma psicóloga negra no centro do jogo

Entrevista revela os impactos do racismo na saúde mental de participantes negros em realities e orienta como se proteger nesse ambiente de exposição e conflito

 

No universo dos reality shows, onde tudo se transforma em espetáculo, as emoções e os conflitos dos participantes ganham holofotes — especialmente quando pessoas negras ocupam esse espaço. A psicóloga Shenia Karlsson, especialista em negritudes e racialidades, tem acompanhado de perto os efeitos dessa superexposição na saúde mental de pessoas negras. Com atuação como mediadora de conflitos em um programa do gênero, ela identifica padrões de adoecimento que se repetem dentro e fora da televisão.

Nesta entrevista exclusiva à Revista Raça, Shenia aprofunda os impactos emocionais do racismo em ambientes de confinamento e competição, analisa a solidão racial, o peso da representatividade e a distorção de narrativas negras pela mídia. Com uma escuta atenta, ela também oferece orientações práticas para quem pretende participar de realities e propõe caminhos para preservar a saúde mental em uma sociedade onde até o afeto é atravessado pelo racismo.

O que sua experiência em um reality show evidenciou sobre a saúde mental de pessoas negras?
Minha trajetória como psicóloga, com foco em negritudes e racialidades, me proporciona ferramentas valiosas para compreender como a questão racial afeta relações familiares e sociais. Como mediadora de conflitos no programa, percebo que as queixas e questões levantadas por pessoas negras em atendimentos individuais ou coletivos se repetem – e muitas vezes se ampliam – dentro do reality. Esse formato funciona como uma vitrine social, revelando tensões cotidianas.
Quando pessoas negras estão em evidência, enfrentam cobranças severas, ativando estigmas que favorecem o adoecimento silencioso. Em um ambiente de confinamento e competição, essas pressões se intensificam. Ao inserir a questão racial nesse contexto, a discussão sobre saúde mental se torna ainda mais urgente.

A saúde mental de pessoas negras é mais vulnerável em contextos de superexposição?
Sem dúvida. O racismo estrutural impõe uma pressão constante sobre pessoas negras, especialmente em espaços de visibilidade. A cobrança por “representar bem” a comunidade negra pode gerar ansiedade, autocensura e medo de reforçar estereótipos.
A representatividade, muitas vezes celebrada, pode ser também um fardo: quando a pessoa negra não corresponde às expectativas, é rapidamente rotulada negativamente – como vimos no caso do Davi, vencedor do BBB 2024. Além disso, micro agressões, racismo velado e isolamento em grupos majoritariamente brancos amplificam a solidão racial e o desgaste emocional.

 

Reality shows exploram o conflito como entretenimento, e emoções legítimas de participantes negros são facilmente distorcidas, reforçando estigmas. É fundamental estar atento a esses riscos.

Há pouco tempo o debate sobre saúde mental da população negra ganhou mais espaço. Como você vê esse avanço?
Essa é uma pauta antiga. Intelectuais negros como Juliano Moreira, Frantz Fanon, Neusa Santos e Lélia Gonzalez discutem o impacto do racismo na saúde há décadas. No entanto, suas produções foram ignoradas ou silenciadas por epistemicídio.
Hoje, graças ao ativismo de profissionais negros e à demanda por cuidados mais conectados à realidade racial, essas vozes ganham força. E é preciso dizer: há um interesse crescente de profissionais brancos nessa pauta, mas muitos o fazem por viés mercadológico. Minha formação, por exemplo, veio da escuta e da vivência com mulheres negras e periféricas no Rio de Janeiro – experiências muito mais potentes do que o que a universidade me ofereceu.

Que conselhos você daria para pessoas negras que entram em realities?
É essencial estar preparado emocionalmente. Um corpo negro não é percebido da mesma forma que um corpo branco: a visibilidade, o carinho do público e as oportunidades pós-programa são desiguais.
Sugiro:

  • Conheça os riscos: reality shows distorcem narrativas e emoções negras são facilmente estereotipadas.
  • Cuide da sua saúde mental: tenha apoio externo, estabeleça limites e evite se tornar “educador” compulsório sobre racismo.
  • Jogue com estratégia: identifique os papéis que podem te impor. Não tente ser a “representatividade perfeita”.
  • Esteja preparada para o pós-show: as redes sociais podem ser cruéis. Delegue a moderação de comentários e busque uma pausa digital.
  • Pesquise antes: conheça o histórico do programa e, se possível, converse com ex-participantes negros.
    Sua saúde vem em primeiro lugar. Se decidir entrar, que seja de forma estratégica e com autoprotectividade.

Como manter a saúde mental em um país onde até o afeto é atravessado pelo racismo?
É possível manter a mente tranquila, mas exige consciência e construção coletiva. Algumas direções:

  • Entenda que o problema não é você. O racismo é um sistema, não uma falha pessoal.
  • Construa uma rede de apoio afetiva e antirracista. Relações saudáveis não exigem justificativas constantes.
  • Desromantize a dor. Sentir raiva, tristeza ou cansaço é humano.
  • Invista em referências que celebrem sua existência. Rir e celebrar também são formas de resistência.
  • Descanse. Recarregue. Proteja-se. Terapia com profissionais negros pode ser um porto seguro.
  • Reescreva as regras. Defina seus próprios padrões e pratique o amor-próprio.

Ser negro em um mundo racista é exaustivo. Mas manter a mente tranquila é possível quando você se escolhe e se protege, dia após dia. Axé!

 

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