Trans, negra e poderosa: conheça Erika Hilton

Erika Hilton é a primeira capa de 2022 da Revista RAÇA e esperamos que seja, como ela contou durante a entrevista que é um dos seus objetivos, a primeira travesti no plenário da Câmara dos Deputados

Ela foi a vereadora mais bem votada no Brasil, nas eleições municipais de 2020, na cidade de São Paulo.

À frente da Comissão Parlamentar de Inquérito da Violência contra Pessoas Trans e Travestis, desde setembro de 2021, a vereadora paulista está ganhando espaço e se tornando cada vez mais influente na política brasileira. 

Erika Hilton entrou para a lista do prêmio Most Influential People of African Descent (Mipad), que reconhece os afrodescendentes mais influentes no mundo e é apoiado pela Organização das Nações Unidas (ONU). A única política brasileira a ser reconhecida. 

Podemos com certeza considerar Hilton como uma forte oponente de políticos conservadores como o presidente Jair Bolsonaro. Uma mulher, travesti, negra é a figura em quem podemos nos espelhar para pensar em um futuro que garanta nossa sobrevivência com mais dignidade. Afinal, como  Angela Davis já pontuou, “Quando a mulher negra se movimenta, toda a estrutura da sociedade se movimenta com ela”.

Acompanhe a entrevista com a vereadora de São Paulo, Erika Hilton, primeira capa de 2022 da Revista RAÇA.  

RAÇA: Como foi a sua história de vida e sua entrada na política? O que te inspirou para isso?

Erika Hilton: A minha história é muito parecida com a maioria das histórias de mulheres negras do Brasil, em especial mulheres negras travestis e transexuais. Eu cresci em Francisco Morato, região metropolitana aqui da cidade de São Paulo, cidade extremamente periférica e dormitória. Morei em um lar com a minha avó, com as minhas tias, que eram empregadas domésticas, um lar extremamente matriarcal. Tive muito amor, uma infância linda, querida, que eu lembro com muito saudosismo porque foi uma infância com muita plenitude de poder ser, de poder existir, de trocas, apesar das dificuldades do território, da realidade daquelas mulheres negras que me criaram, eu tive uma infância muito privilegiada porque minha mãe era uma das poucas que trabalhava aqui em São Paulo, então tinha uma condição econômica um pouco melhor, então eu tive uma infância muito maravilhosa. 

Com a entrada da religião, do fundamentalismo religioso na minha casa, é que começam os meus conflitos. E eu fui expulsa de casa com 14 anos de idade, tendo que viver da prostituição de forma compulsória, ainda criança, tendo que me virar. Não vivi em situação de rua, mas precisei dormir nas ruas algumas vezes por não ter para onde voltar. E a minha adolescência inteira se dá através da expulsão da minha casa e da prostituição, do abandono familiar. Na prostituição eu me deparei com muitas realidades cruéis, perversas e dolorosas, vinda de um lar tão protegida, com tanto amor, com tanto cuidado, estar nas ruas, abandonada, de fato, foi algo muito doloroso, muito difícil de encarar. E aí através destas histórias, da minha história e das histórias que eu também fui encontrando ao longo da minha trajetória é que eu vou percebendo uma necessidade de luta, uma necessidade de lutar para mudar aquela realidade, já que 90% das mulheres transsexuais e travestis, no Brasil, vivem da prostituição, esse é um número muito assustador. E todas elas com as mesmas histórias, vítimas da mesma violência, do mesmo desprezo social. Então eu comecei a perceber que estar naquele lugar fazia parte de um processo e de um projeto social e foi aí que eu comecei a buscar referências para entender o que se passava com o meu corpo, com a minha história e como eu poderia transformar aquilo. Foi voltando a me relacionar com a minha família que eu voltei para escola e nesse momento eu entro numa batalha com uma empresa de ônibus pelo reconhecimento do meu nome social no cartão de transporte escolar. E isso dá uma repercussão midiática muito grande, em  2015, em Itu ainda.  Porque eu cresci em Francisco Morato e quando a minha mãe vai para igreja ela acha que a gente tem que morar em Itu para me tirar do convívio dos meus amigos primeiro, antes de me expulsar de casa. Eu vou ser expulsa de casa em Itu. E em Itu vou retomar a escola e aí vou travar essa briga com essa empresa de ônibus pelo reconhecimento do uso do nome social na época e isso vai dar uma grande repercussão midiática, nos principais jornais, seja em Itu, mas também nos jornais de todo o estado de São Paulo, inclusive em outros estados. E aí se dá a minha entrada para o ativismo, minha entrada para a vida política. Depois eu vou para São Carlos, estudar na Universidade Federal de São Carlos, e com o movimento estudantil é onde de fato eu começo a me traduzir mais politicamente dentro dos debates estudantis, nos debates raciais, debates de gênero e sexualidade e começo a me envolver mais com os partidos políticos e a minha entrada se dá nesse momento, que eu vou para a universidade, que eu começo a me organizar com o movimento estudantil e a partir daí começa a minha trajetória política.

RAÇA:  Como é para um corpo negro ocupar um espaço tão conservador e machista como a Câmara de São Paulo?

Erika Hilton: É desafiador. É difícil, porque todo o racismo estrutural e o machismo estrutural ganham uma força e ganham uma materialidade dentro da câmara que é assustadora. Porque ele se reflete nas palavras, nos comportamentos, nos olhares, nas relações. Então é bastante desafiador, mas também é um compromisso muito importante de ser cumprido, porque a chegada de um corpo que pouquíssimo esteve ali, são poucas as mulheres no parlamento, em especial as mulheres negras. Eu chego numa leva onde, pela minha quantidade de votos, eu seria considerada a terceira mulher negra a entrar naquele espaço. Um espaço que sempre quis jogar a pauta racial para debaixo do tapete, um espaço que promove uma política de marginalização, de exclusão para estas populações. Então é muito difícil, é bastante desafiador, mas também é um marco de mudanças de lugares, de posições, é dizer que este corpo negro, que este corpo travesti, que este corpo de mulher, que é um corpo que sempre foi retratado pela política como um corpo abjeto, como um corpo que não poderia produzir política, agora não só produz a política, mas produz a política sendo a mulher mais bem votada do Brasil, mostrando que tem um projeto de transformação, mostrando que tem um compromisso com as bases, mostrando que tem um alinhamento histórico com a pauta dos movimentos negros, do movimento de mulheres, do movimento LGBTQIA+ e que o nosso trabalho, nosso corpo e a nossa presença dentro da Câmara Municipal não é diferente da presença de nenhuma outra pessoa e que por mais difícil, por mais desafiador, por mais embates que tenham, porque a sociedade ainda não quer ver uma mulheres igual a mim ocupando lugares de poder como é a política, eles terão que nos engolir porque nós chegamos, sabemos exatamente como chegamos até lá e o que queremos fazer dentro daquele espaço. Eu acho que é dessa maneira que eu percebo este corpo negro, feminino, travesti, em um espaço que ainda hoje resiste a essa presença.

Para ler a entrevista completa com Erika Hilton, primeira capa de 2022 da Revista RAÇA, clique aqui e assine a revista.

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