Espanha: a pureza de sangue, o continente africano e o racismo contemporâneo.

Colunista: Zulu Araújo

De todos os países europeus que participaram do colonialismo no continente africano, a Espanha é o único país que teve, literalmente, a África dentro do seu território e por conta disso possui traumas até os dias atuais. 

Do século VIII (711) até o final do século XV (1492), a Península Ibérica, onde hoje estão localizados Espanha e Portugal, tiveram a presença dos povos africanos, oriundos do norte da África, chamados de mouros, mauritanos ou sarracenos, que deixaram marcas profundas na economia, no tecido social e principalmente na cultura da região.

O fado (Portugal) e o Flamenco (Espanha), manifestações culturais que marcam, a Península Ibérica, por exemplo, são de origens mouras.

Na verdade os mouros, eram povos africanos (não uma etnia como muitos pensam), que viviam onde hoje está o Marrocos e a parte ocidental da Argélia. Mouro, em latim (maure), que significa (Negro) e era o nome pelo qual os cristãos se referiam as pessoas de pele escura e de religião muçulmana.

Ao longo do período em que estiveram na região ibérica, os mouros introduziram técnicas agrícolas inovadoras, cunharam moedas, desenvolveram as atividades comerciais, exploraram minérios, construíram estradas e desenvolveram economicamente a região.

Ao contrário do legado de miséria, genocídios e destruição deixados pelos europeus durante o período colonial, os mouros construíram cidades que são referências de beleza e riqueza, a ponto de serem consideradas patrimônios culturais da humanidade.  Exemplo nesse sentido, são as cidades de Sevilha, Córdoba e Toledo.

Para que tenhamos ideia desse legado, dos 7 milhões de espanhóis existentes à época, aproximadamente 1 milhão eram de mouros e outros 200 mil eram de judeus, que posteriormente, após um século de perseguição intensa, se converteram ao cristianismo, chamados de “cristãos novos”.

E sobre esses dois contingentes populacionais se abateu o ódio e a discriminação para todo e sempre, por parte dos espanhóis. É daí que vem a força do Estatuto da Pureza de Sangue, que teve sua primeira publicação ainda em 1449, (antes da expulsão dos mouros) lançado pelo Papa D. João III, por meio de bula papal, na cidade de Castela.

Os Estatutos da Pureza de Sangue, cumpriam a função de excluir os cristãos-novos, bem como os seus descendentes ou aqueles que possuíam o “sangue infecto”, de participarem das corporações de ofícios, da Igreja Católica, das Ordens Militares, além de serem proibidos de ocuparem cargos burocráticos e oficiais. Ou seja, eram párias sociais.

Segundo o historiador Antumi Toasijé, (professor da New York University em Madri), a Espanha basicamente “inventou o racismo como conhecemos hoje, durante as disputas entre cristãos e mouros da Península Ibérica na Idade Média e perpetuou por muitos anos uma política racista contra imigrantes do norte da África.”

As consequências dessa política se fazem presentes na Espanha com tal profundidade, que tem sido cada vez mais forte no país a necessidade de “provar sua branquitude”, por conta dos espanhóis se sentirem excluídos do restante da Europa, afirma o historiador.

Prova disto, é que a Espanha, deve ser um dos poucos países do mundo que não possui qualquer restrição legal ao racismo, seja ele de que ordem for. Há no momento um projeto de lei, tramitando no Congresso espanhol desde 2022, quando explodiram os casos de racismo no futebol, tendo como alvo principal o brasileiro Vini Junior, mas que até o momento não foi para lugar nenhum.  

Na África, os espanhóis dedicaram-se muito mais ao tráfico negreiro do que propriamente a ocupação de territórios e para tanto, fez uso dos territórios que havia conquistado ainda no século XV, como entreposto do lucrativo tráfico negreiro para as Américas, onde estavam os seus interesses coloniais maiores.

Sob o seu domínio, na forma de protetorado, estiveram: as Ilhas Canárias (desde 1496), Ceuta (1645), Melilla (1497), todas elas consideradas cidades autônomas, a partir da constituição de 1975, mas sob o controle espanhol. E o Saara Ocidental (1497), até hoje em conflito com o Marrocos que reivindica a maior parte do seu território.

Enfim, apesar dos espanhóis terem tido uma pequena presença no continente africano, enquanto colonizadores, o seu legado para o racismo contemporâneo no mundo é, seguramente, um dos mais nefastos e duradouros da história da humanidade.

Toca a zabumba que a terra é nossa!

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Mestre em Cultura e Sociedade pela Ufba. Ex-presidente da Fundação Palmares, atualmente é presidente da Fundação Pedro Calmon - Secretaria de Cultura do Estado da Bahia.

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