“Eu sou preto sim! Pode perguntar pra Polícia!”

Colunista: Juliano Pereira

Alison, 18 anos, aluno do interior de São Paulo, passou em medicina na USP. Foi aprovado, num dos cursos mais concorridos. Longos anos de estudo lhe esperam. 

Alison é pardo. Assim se autodeclarou no vestibular. Entrou pela política de vagas para PPI (para pretos, pardos e indígenas). E antes que você julgue que assim é mais fácil passar, imagine correr uma maratona com um saco de 20kg. Ou correr o dobro do que os demais competidores. O sistema de cotas tenta reduzir a desvantagem de quem sempre larga em último. Pra mim, cotista é quem vai pra universidade pública de carro zero.

_ Pera lá, Alison, antes de fazer planos, mão na cabeça. Deixa a gente aqui da USP verificar se você é preto mesmo. Sabe como é brasileiro, né?! Tem gente aí querendo cortar a fila. Aliás, como é que faz pra “classificar” gente branca de cabelo “ruim”?

A fala é ficção, mas o que aconteceu, de fato, foi que o Alison acabou barrado pela USP, no começo de 2024. O caso dele não é isolado. Outros estudantes também não passaram pelo comitê de heteroidentificação da USP. “O Alison não tem nariz largo, o cabelo estava curto e a foto do registro estava meio desbotada”. Sim, foi essa a desculpa para recusar a matrícula. Imagino a frustração em casa. Guarda a faixa da aprovação, exclui o post no Instagram! Raiva, tristeza e lágrimas.

Essa etapa de “validação” de raça é recente. Burocracia para evitar que as cotas sejam usadas de má-fé. Ideia que parece boa, mas o diabo mora nos detalhes. E o Alison, para a USP, não tinha o fenótipo (características físicas, como cor de pele, cabelo, nariz etc) de uma pessoa parda.

Fiquei me perguntando por que não chamaram um segurança de shopping ou um homem de farda para a avaliação? Para que recorrer à banca de faculdade se há pessoas doutoradas em encontrar suspeitos nas ruas, seja em cima de moto ou parado na esquina? Sim, contém ironia, ok?!

E mais irônico ainda é você ser pardo ou não, dependendo da situação. São dois pesos e duas medidas. Para sofrer enquadro ou ser identificado em câmera de segurança é uma coisa. Agora para entrar na faculdade, ser promovido, ou conseguir um financiamento, a cor, digo, a história é outra. Fico imaginando o segurança do shopping e o gerente do banco conversando.

_ Esse aqui não tem renda pra comprar apartamento, só serve mesmo pra tomar geral.

Você pode achar a discussão complexa, até preconceituosa, mas ela é política. Porque políticas de cotas, decidir quem pode ser médico ou advogado, mexem nas estruturas de poder. E poder está associado com dinheiro, o CEP e também com cultura. Ser preto em Angola, em Portugal, ou mesmo em Porto Alegre ou em Salvador tem significados e desafios diferentes. E pra cada região, a sociedade vai ter sua forma de enfrentar ou sufocar o problema.

Por exemplo, nos Estados Unidos, que tem graves problemas raciais, essa banca não faria o menor sentido. Porque a cultura e identidade de raça são diferentes daqui. Enquanto no Brasil usamos o fenótipo para “considerar” uma pessoa como preta, lá na terra do Mickey, basta  ter uma simples gota de sangue de um único antepassado negro para ela ser considerada negra.

Mas essa não é a nossa realidade. E Alison, sinto muito! Ainda somos exceção nas salas de aula. No meu caso, há 20 anos, éramos 2 pessoas pretas numa classe com 50 estudantes na USP. Nos últimos 10 anos, o número aumentou para uns 8 a 10 nessa mesma turma. E, justamente por isso, a USP precisa de você. Mais do que precisar, a USP deve pedir desculpas. E reconhecer o esforço e a luta de tantas outras pessoas, como nós, que só querem o direito de estudar.

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