Filho, Leva o Documento
Colunista: Juliano Pereira
A frase é comum. Desde cedo, ouvi dos meus pais para levar o RG aonde quer que fosse. E sempre reclamava do que julgava exagero.
“Mas eu só vou ali no shopping com a turma!”
“Não vai pro estádio, Juliano, que é lugar perigoso”, dizia meu pai.
Claro que eu fui. Claro que teve blitz, com direito a berro na mão e esculacho.
“Filho, você tem que se comportar direito. Não chame a atenção.”
E claro que eu desobedeci. Não dá pra ficar calado com injustiça no escritório. A coisa é tão descabida que o sangue ferve. E claro que você, pai, tinha razão. Quantas vezes levei a fama de agressivo, pedante e arrogante. De cada dez pessoas que ousam se posicionar, a caneta vai pesar é pra quem tem o cabelo crespo.
Cresci e aprendi, com os olhares e desconfiança na rua, que “filho, leva o documento” é um pedido de cuidado, de quem tem medo. De quem já viu e sentiu demais. E se a gente procurar, encontra motivos para justificar a tal da hipervigilância em que nós, população preta, mulheres, pessoas trans, crescemos e vivemos. A gente nem percebe, mas vai passando de geração em geração essa desconfiança, esse medo que é uma forma de criar casca, numa sociedade que atira antes de perguntar.
Mas as coisas estão mudando, Juliano! Sim e não! O risco é iminente. Está literalmente na esquina. Em 2021, 72% das pessoas assassinadas no Brasil eram pretas. Assim como 67,7% das vítimas de latrocínio. E 84,1% das pessoas mortas pela polícia. O que você diria para o seu filho quando sai na rua?
Este texto fala sobre medo, com certeza. Mas essa é a nossa força também. Força de resistência. De seguir mesmo diante da brutalidade estrutural e institucional. A vida tem que continuar. As crianças vão crescer e os filhos e filhas vão para o mundo, com RG no bolso.
E quando falo em seguir, é seguir com a cabeça erguida. É caminhar com todos esses alertas e continuar “respirando normalmente”. Porque o racismo quando não mata adoece. Sim, esse esgotamento diário cansa, pesa. No final das contas, a gente só quer andar na rua tranquilamente. Sem medo de voltar sozinha pra casa, nem olhar o relógio aflita a cada 5 minutos enquanto espera as crias abrirem a porta.
Tenho dois filhos pequenos e, confesso, sinto às vezes, dá um aperto no peito. Eles nem podem andar sozinhos na rua. Ainda. Mas a cabeça já fica alerta. Sabendo que o dia vai chegar. Será que meus netos vão passar por isso também? Até quando a gente vai falar: “Filho, leva o documento”?