Flip: autoras defendem enfrentamento conjunto de machismo e racismo

Em meio a uma edição mais intimista da Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), o encontro entre as autoras Djamila Ribeiro e Selva Almada cumpriu a expectativa de trazer à tona debates de cunho social mais “candentes”, como tinha definido a curadora da Flip, Josélia Aguiar. Aplaudidas em diversos momentos na noite de hoje (26), as escritoras defenderam um feminismo amplo e que enfrente os problemas, dando a eles os nomes que têm.

“Não dá para ser feminista sem ser antirracista. Não dá para ser feminista sem lutar contra a opressão por orientação sexual”, resumiu Djamila Ribeiro, autora do livro Quem tem medo do feminismo negro?. “Não dá para ser feminista e ser a favor da maioridade penal. Não dá para ser feminista e ser a favor da reforma trabalhista, por que quem vai sofrer com isso?”, questionou ela, se referindo à população negra como a mais prejudicada por essas políticas.

A autora destacou que é preciso reconhecer as opressões específicas que as mulheres negras sofrem, e que os grupos marginalizados não devem escolher contra qual opressão lutar, mas enfrentar o machismo e o racismo conjuntamente, já que, na visão da autora, são ambos que estruturam todas as opressões da sociedade brasileira.

“Muitas pessoas pensam que nomear é dividir, mas é o contrário. A sociedade já é dividida com homens brancos no topo e mulheres negras na base”.

Djamila argumentou que mesmo estereótipos como o da mulher frágil e delicada ou a circunscrição da mulher na casa com os filhos são características da opressão contra a mulher branca e não se aplicam à vivência das negras no Brasil. “A mulher negra não foi aquela que ficou em casa, e o homem negro saiu para trabalhar. As mulheres negras se tornaram empregadas domésticas”, diz ela, que destrincha que os estereótipos contra a mulher negra foram muito mais no sentido de brutalizar e hipersexualizar seus corpos.

Ao responder a mediadora da mesa, Alice Sant’Anna, Djamila considerou que uma demonstração da vulnerabilidade das mulheres negras foi o assassinato da vereadora Marielle Franco (PSOL), ainda sem solução depois de mais de quatro meses.

“Mesmo sendo uma parlamentar, isso não a protegeu de ser assassinada de forma tão brutal”, disse ela, que contou conhecer Marielle e ainda não ter terminado seu processo de luto. “Isso foi uma resposta a todas nós. A gente sentiu muito medo. Fiquei dias sem sair de casa, fiquei de cama. Ainda estou elaborando esse luto”.

Feminicídio na Argentina

Ao lado da brasileira estava a autora argentina Selva Almada, que publicou o livro Garotas Mortas, que conta histórias reais de feminicídio em seu país. Selva lembra que as histórias a marcaram porque as vítimas, como ela, eram jovens de povoados menores. Nesses lugares, uma série de costumes tentam assustar as mulheres em relação a ameaças fora de suas casas, mas não são denunciados com a mesma frequência os perigos que vêm das pessoas próximas, como vizinhos e familiares.

“As mulheres não estão seguras em nenhum lugar. Foi uma entrada brutal em minha adolescência, como mulher, me dar conta disso”.

A autora foi didática em explicar que o feminicídio não é qualquer assassinato em que a vítima é mulher, mas apenas aqueles em que fica clara a opressão de gênero, em que a mulher é morta por ser mulher.

“Nomear as coisas com seu nome justo e com a palavra que lhes cabe é uma maneira de começar a ver esse tipo de assassinato em sua real dimensão”, defendeu a autora, que denuncia em seu livro todo o machismo estrutural que se volta contra essas próprias mulheres quando elas são vítimas dos crimes, protegendo seus algozes em uma trama que se baseia em pequenas agressões cotidianas.

“Essas meninas foram assassinadas por seus assassinos, pela justiça e pelas pessoas das cidades onde viviam, que estavam falando de suas histórias e de seus nomes sem saber o que tinha acontecido”, disse ela, que considera que a Argentina avançou muito em poucos anos, mas ainda tem uma sociedade misógina como o resto da América Latina.

“Me sinto com uma obrigação e creio que todas as mulheres temos que nos sentir obrigadas a responder por aquelas que não podem responder. Não só as que estão mortas, mas as que estão silenciadas”.

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