Friccionar os limites entre minha história e as de outras mulheres negras.
Passamos muito tempo sem a possibilidade de citar o trabalho de tantas artistas ou de umas das outras, e hoje, como Colunista da Revista Raça, mapeando trabalhos potentes, feitos por e sobre nós, mulheres negras, tenho cada vez mais me encantado com a imensidão das nossas possibilidades e com a importância da arte para transformar a dor em beleza.
Muitas verdades sobre as nossas identidades étnico-raciais, bem como no que diz respeito ao gênero e às sexualidades, são questionadas por meio da fotografia, gravura, performance e experimentos de hibridismo de linguagens como videoinstalações e videoprojeções mapeadas no trabalho artístico de Yasmin Nogueira, doutoranda em Artes Cênicas-PPGAC-UFBA e professora no Departamento de Artes e Design na Universidade Federal de Sergipe-UFS, para quem a arte, independente da linguagem, é um instrumento, sobretudo, político:
“Enxergo meus últimos trabalhos dessa maneira. Venho pensando nas subjetividades enquanto marcadores de diferença acerca do sujeito negro feminino como disparadores para criação artística. Diversas artistas que admiro vêm também trabalhando, de formas distintas, sobre essa temática que é extremamente necessária, dentre elas posso citar Carol Barreto, Fernanda Julia, Fernanda Silva, Laís Machado, Michelle Mattiuzzi, Mônica Santana, Priscila Rezende, Rosana Paulino, Val Souza, dentre muitas outras.”
Pensar na intersecção entre as identidades étnico-raciais, de gênero e sexualidades num momento em que vivemos tantos retrocessos no que tange às conquistas de direitos de mulheres e outros grupos subalternizados no Brasil é ainda mais complexo dentre as artistas negras, por ouvirmos ecoar nos textos dessas novas/velhas leis, a voz dos costumeiros grupos hegemônicos em representatividade.
Do interior dessa matriz discursiva que privilegia o sujeito ideal – sempre o homem, cisgênero, branco, heterossexual, cristão, magro e urbano – como base comparativa que não precisaria ser localizada, mas que está presente nas justificativas do cerceamento de direitos, para que se valendo da sua “superioridade construída” e por meio de violências outras, seja apenas SUA a VOZ a validar o controle sobre todos os corpos e vivências.
Localizando e corporificando saberes, reconhecemos a importância da nossa experiência cotidiana e do conhecimento tácito, a fim de confrontar esses ditos saberes universais, desconstruindo as representações excludentes e nos provocando a pensar qual é o campo de verdades que de fato nos afeta.
Na conversa com Yasmin Nogueira, depois de assistir a uma performance feita na nossa turma de pós-graduação, falamos sobre os incômodos expressados pela platéia quando a artista se colocou quase desnuda e interpretando um trânsito de gênero. A provocação feita pela artista incorpora uma reflexão acerca da predominância nos discursos androcêntricos e de um apelo à favor da natureza, como preponderante à compreensão da construção cultural dos corpos e da sua mobilidade plástica, ao reconhecer a produção sócio-histórica da heterossexualidade compulsória como uma força motriz da estereotipização das expressões individuais, apontando as narrativas da aparência como um elemento constritor da história de vida de milhares de pessoas, como destaca Yasmin:
“Eu senti a necessidade de falar sobre mim, sobre minhas inquietações, sobre minhas alegrias e dores que vêm desde a infância e isso tem se materializado na produção. Venho trabalhando em proposições teórico-práticas, fundadas na autobiografia, enquanto ferramenta para um conhecimento de si, que perpassa os encontros e desencontros com o outro, buscando as subjetividades, as experiências vividas como um local para o entendimento de identidades diversas. Parto do meu local de fala enquanto mulher, negra, lésbica, e utilizo meu corpo como um suporte discursivo e performativo, um local para a investigação, questionamentos de relações identitárias e de gênero. O principal ponto de partida das minhas atuais proposições atuais é explorar as possibilidades de ficção para criações narrativas, como um instrumento para friccionar os limites entre minha história e as de outras mulheres negras, como um meio para que tais vozes possam ressoar.”
São muitas as vozes que ecoam por meio desse lindo trabalho, e que um pouco dele possa nos inspirar a sair do lugar!
Performance “Carta Branca” 2017, Ocupação “Diário Rosa”. Imagens de Íris Faria.
As mãos como o toque indesejado, insistente, corriqueiro, se fazem constantemente presentes em nossas histórias. Materializam um lugar em que me uno à outras. As histórias se fundem e mais do que a sensação de nos calar, negamos mesmo a ver, pela necessidade de continuar a conviver com as histórias marcadas à ferro na memória.
Fotoperformance “Tutorial” 2017, Imagens de Adriano Machado.
As relações estabelecidas para a concepção da obra, tiveram início quando, ao realizar uma rápida busca na internet sobre maquiagem para pele negra, deparei-me com um tutorial em vídeo. O que parecia uma troca de saberes sobre a promoção da beleza negra cai por terra quando se começa a “ensinar” as melhores maneiras de “disfarçar”, “corrigir”, “diminuir” narizes e bocas largas, grossas.
Performance “Erigir Abjeto” 2016, Imagens de Adriano Machado.
A construção da masculinidade encenada em “Erigir Abjeto” se relaciona diretamente com as drag kings, artistas performáticos que fazem uma repetição paródica das normas desnaturalizando-as e subvertendo-as através da caracterização e personificação do masculino.
CAROL BARRETO
Mulher Negra, Feminista e como Designer de Moda Autoral elabora produtos e imagens de moda a partir de reflexões sobre as relações étnico-raciais e de gênero. Professora Adjunta do Bacharelado em Estudos de Gênero e Diversidade – FFCH – UFBA e Doutoranda no Programa Multidisciplinar de Pós-Graduação em Cultura e Sociedade – IHAC – UFBA, pesquisa a relação entre Moda e Ativismo Político.
*Este artigo reflete as opiniões do autor. A Revista Raça não se responsabiliza e não pode ser responsabilizada pelos conceitos ou opiniões de nossos colunistas