O som das vozes tomou conta das ruas de Antananarivo. Gritos, tambores, passos firmes — uma multidão que há semanas protesta contra a fome, o apagão e o abandono. Mas, na manhã desta terça-feira (14), o eco da insatisfação ganhou outro tom: os militares de Madagascar anunciaram que tomaram o poder, derrubando o presidente Andry Rajoelina e mergulhando o país em mais um capítulo turbulento da sua história.
“Assumimos o poder”, declarou o coronel Michael Randrianirina, da unidade de elite CAPSAT, em rede nacional. Poucas palavras, mas o suficiente para estremecer um país que já vinha vivendo à beira do caos.
O movimento militar veio logo após o impeachment de Rajoelina, aprovado pelo Parlamento em meio a protestos que tomaram conta das principais cidades. O presidente, que havia tentado dissolver a Assembleia Nacional na véspera para evitar a votação, perdeu o controle político e o apoio popular.
Um povo cansado de esperar
Nas ruas, o sentimento é o mesmo: cansaço. Cansaço de promessas vazias, de cortes diários de luz e água, da pobreza que parece não ter fim.
“Falta tudo. Água, energia, esperança. Mas sobra coragem”, disse um jovem manifestante, com o rosto pintado com as cores da bandeira de Madagascar.
Foi dessa coragem que nasceu o movimento Gen Z Mada, liderado por jovens que usaram as redes sociais para unir vozes e organizar atos pacíficos. Mas a repressão foi dura: a ONU fala em 22 mortos e mais de 100 feridos — números que o governo contesta, mas que a população sente na pele.
O presidente que fugiu da própria sombra
Andry Rajoelina, o presidente deposto, é uma figura controversa. Ex-DJ e empresário, chegou ao poder pela primeira vez em 2009 após um golpe militar — o mesmo destino que agora o derruba.
Nos últimos anos, seu governo foi marcado por denúncias de corrupção, crises econômicas e desconfiança popular. Mesmo assim, ele se manteve no poder, reeleito em 2018 e novamente em 2023.
Agora, seu paradeiro é incerto. Na noite anterior ao golpe, apareceu em uma transmissão ao vivo no Facebook, dizendo estar em um “local seguro”. Desde então, silêncio.
O eco da história e a força da resistência
A queda de Rajoelina não é apenas um fato político — é um reflexo de um país cansado de ser silenciado. Madagascar, ex-colônia francesa, vive há décadas entre golpes e esperanças. Mesmo com a independência proclamada em 1960, as feridas do domínio colonial ainda marcam sua trajetória.
Hoje, 75% da população vive abaixo da linha da pobreza. Apenas um terço tem acesso à eletricidade. E, ainda assim, é desse mesmo povo que nasce a força para recomeçar.
O ex-presidente Marc Ravalomanana, rival político e voz da oposição, falou sobre a necessidade de reconstrução:
“Há um vazio de poder. A solução não é vingança, nem confusão. É uma transição pacífica, inclusiva e responsável.”
Entre o caos e a esperança
Enquanto os militares prometem criar um comitê de transição e a União Africana condena a interferência, as ruas continuam cheias. Não de armas, mas de vozes. De mãos erguidas. De sonhos que teimam em não morrer.
Porque, no fim, a história de Madagascar é a história de muitos povos africanos: um ciclo de dor, resistência e fé.
E, mesmo em meio ao caos, há quem ainda acredite que das ruínas pode nascer um novo país — guiado não por fardas, mas pela voz de quem nunca deixou de lutar.