“Tudo demais é sobra e tudo de menos é miséria”. Esse adágio, muito popular no Nordeste brasileiro, se adequa como uma luva para a atitude quixotesca de Toni Garrido (ex Cidade Negra) ao mudar a letra de um dos seus grandes sucessos, juntamente com Da Ghama – “Girassol”, para atender os reclamos de um identitarismo fundamentalista e puritano, que tem assolado as franjas da classe média brasileira.
Numa postagem magistral, feita no seu Instagram, intitulada “Mirou no sol. Acertou na Lua”, o cantor/compositor/escritor baiano, Manno Góes, resumiu assim o assunto:
“O identitarismo exacerbado vem se impondo como uma nova forma de ortodoxia, julgando o passado com os critérios morais do presente, reescrevendo letras, silenciando obras, e transformando artistas em réus de uma moral pública cada vez mais impaciente e vaidosa. É uma espécie de puritanismo moderno, que substitui a fé religiosa pela fé ideológica.”
Por mais que a gente goste de Toni Garrido não dá para concordar com essa bobagem de mudar a letra de uma música, achando que assim estamos antenados com a luta contra o machismo. Isso é lacração pura, conforme afirmou seu parceiro Da Ghama.
Do mesmo modo que não dá para submeter a vida real a um puritanismo estéril e paralisante, como vem ocorrendo nas redes sociais.
Essa história está ficando tão bizarra, que após a cantora Cláudia Leite, também alterar a letra da música “Caranguejo”, porque citava o nome de um Orixá do Candomblé, em flagrante intolerância religiosa, a Câmara Municipal de Salvador, recentemente, num mergulho à idade média, não deixou por menos e aprovou uma Lei que prevê multas e outras punições para quem usar fantasias de Jesus Cristo ou freiras de forma desrespeitosa ou sensual durante o Carnaval e outras festas populares.
Para o autor da Lei, o Vereador César Leite essa é uma forma de se combater a “Cristofobia”. Parece brincadeira, mas é verdade. Salvador, mais uma vez, faz valer a máxima de Otávio Mangabeira – “Pense num absurdo que a Bahia tem precedente”.
Em que pese o ridículo dessas decisões que vem sendo adotadas ultimamente seja por artistas ou políticos, há um fato preocupante nesse processo, que é a tentativa de cercear e enquadrar a vida real nos dogmas religiosos e/ou ideológicos.
Pelo andar da carruagem, em breve teremos a volta da censura, com livros queimados em praça pública e o carnaval sendo transformado em retiro espiritual obrigatório, pois o famigerado cancelamento já não será mais suficiente.
Ou seja, o que está em jogo não é o combate ao racismo, a intolerância religiosa ou ao machismo, mas sim uma tentativa de purificar toda e qualquer relação humana, como se assim eliminássemos num passo de mágica a dura realidade vivida pelos negros, pelas mulheres e pelos pobres, conforme afirma Manno.
Muita calma nessa hora gente.
Fundamental mesmo, não é ficar lacrando nas redes sociais em busca de engajamento para agradar as “bolhas” identitárias, bem como monetização, mas sim, lutar para transformar as estruturas sociais, econômicas e políticas do nosso país, que tem garantido a permanência viva do racismo e da discriminação por séculos neste país.
Aliás, o exemplo vigoroso que a população deu no último 21 de setembro é prova inconteste de que isso é possível. Portanto, temperar a luta antirracista, anti machista e anti homofóbica com bom senso e realidade, não custa nada.
Toca a zabumba que a terra é nossa!