Inclusão racial levado a sério

Por: Maurício Pestana

Marcos Samaha é CEO do grupo Tenda Atacado no Brasil e em Angola. Tem experiência em liderança executiva de grandes varejistas como Walmart, Grupo Pão de Açúcar e Tenda e atualmente exerce o cargo de conselheiro de administração da Poupafarma. É Graduado em psicologia pela Universidade de Taubaté (1989) e mestre stricto sensu em administração de  empresas pela Universidade Presbiteriana Mackenzie (2016), onde hoje cursa o doutorado em administração de empresas e dá aula como professor convidado.

O senhor é dirigente de uma das maiores redes atacadistas do país e me parece muito atento à questão racial brasileira. Como esse tema chegou até o senhor?

Minha primeira experiência objetiva com a questão racial foi enquanto atuava como executivo de uma multinacional americana que levava muito a sério a questão da inclusão da diversidade, promovendo sensibilizações sobre vieses cognitivos e microiniquidades do dia a dia. Isso por volta de 2005, quando o tema da diversidade estava ainda pouco em

voga nas empresas no Brasil. Depois, no meu mestrado acadêmico, entre 2014 e 2016, entrei em contato de forma mais profunda com a disciplina de diversidade e inclusão, com diversos autores acadêmicos que levaram o entendimento da questão a um nível bem mais profundo e científico.

Poderia citar aqui autores como Taylor Cox, Stella Nkomo, Stephanie M. Wildman, Michàlle Mor Barak e Kimberlé Crenshaw. Depois tive um momento marcante, quando em um summitde liderança assisti a uma palestra com Bryan Stevenson, advogado, ativista e fundador do movimento Equal Justice Initiative. Esse cara me sensibilizou ao me fazer enxergar o quanto o racismo é uma grande injustiça, uma grande deficiência de caráter do ser humano, em especial das classes dominantes brancas. Em contato com esses autores, e passando a entender meu privilégio branco no contexto do racismo estrutural, decidi seguir para o doutorado e me aprofundar mais na questão do racismo nas organizações, pesquisando o tema no Brasil.

Em sua trajetória escolar e profissional, consegue se lembrar da quantidade de negros ou negras que fizeram parte do seu ambiente? Eles estavam em pé de igualdade, tiveram a ascensão que o senhor teve?

Sou de Pindamonhangaba, no interior de São Paulo. Do jardim da infância à 8ª série do ensino fundamental, estudei em escola pública, que era um ambiente com várias classes sociais, brancos e negros. Tive colegas de sala negros, não saberia dizer quantos, mas provavelmente um terço da turma. Já na faculdade era zero. A faculdade é um funil estreito para o profissional negro. Hoje, com as ações afirmativas e cotas raciais, esse panorama está felizmente mudando, mas na minha época a faculdade era um ambiente “normalizado” branco. Não tive nenhum colega negro na faculdade, e tive apenas uma professora negra ao longo dos cinco anos do curso de psicologia. Na carreira, os negros passaram a ser muito poucos, em especial em posições de liderança sênior. No varejo há vários profissionais negros.

Essas frases ainda são muito comuns no meio corporativo.Como responder a cada uma dessas indagações?

O Brasil é um dos países mais racistas do planeta, e com o pior tipo de racismo, aquele que muitas vezes é sutil, disfarçado, que evita ser identificado uma vez que é crime. Vivemos a herança de uma cultura escravocrata, em que o negro era mercadoria, um sub-humano, sem direito a nada. E as raízes da cultura brasileira são profundamente racistas — o racismo está nas bases, nas estruturas: nos hospitais, na habitação, na escola, no bairro de origem, na maternidade, na nutrição. No mercado de trabalho isso fica escancarado.

Vemos pouquíssimos negros ocupando cargos de liderança nas diretorias e nos conselhos de administração das empresas, e as nacionais são as piores. As empresas estrangeiras ainda conseguem ter um grau pequeno de sucesso em seus programas de diversidade, mas entre as nacionais são raros os casos de empresas que têm um programa efetivo. Como responder ao ideólogo da meritocracia? Olha, é difícil convencer o privilegiado branco de que ele está onde está, em grande parte, por ser um privilegiado. É uma questão de conscientização, de aprendizado como ser humano. De um lado está a consciência, raramente atingida. De outro está uma ideologia fortíssima, a da meritocracia, que ensina às pessoas o que pensar e o que falar, e o reprodutor da ideologia repete algo como sendo sua crença, sua fé, mal sabendo que é um mero repetidor de uma ideologia que nele foi incutida pela educação, em casa, na escola e na empresa.

Por que o senhor acha importante se engajar na luta antirracista principalmente dentro das empresas?

Porque é o justo. Porque o racismo é a maior das injustiças de nossa sociedade, e é nas empresas que ele impede os áreas operacionais, que conseguem construir uma carreira, começar em funções de base e chegar a gerente de loja, a gerente regional, mas sempre em funções operativas. Nas diretorias, tive apenas um colega de trabalho negro em toda minha trajetória.

“ No Brasil não tem racismo”, “isso é coisa que querem trazer para cá”, “assim que o negro estudar e lutar, ele vai chegar e outras frases impedem profissionais de se realizarem, de construírem suas carreiras, ganharem o sustento e a ascensão de suas famílias. Combater o racismo de forma ativa é a forma de contribuir para construir uma sociedade menos injusta. É utopia? Sim, é lento demais, é muito frustrante, mas o que seria o mundo de hoje sem visionários utópicos como Nelson Mandela e Martin Luther King Jr.? De alguma maneira, a sociedade ocidental, que ainda tem muito a evoluir, evoluiu algo, um pouco, graças às lutas antirracistas lideradas por esses utópicos.

Nesses tempos tenebrosos em que vivemos, com pandemias, fugas de capitais e investimentos, recessão e pouca liderança política no Brasil, que futuro o senhor vê para a igualdade racial em nosso país?

Como falei, o processo é muito lento e frustrante. Mas não podemos parar. Vejo aumentar aos poucos o número de conscientes, ou melhor, de aliados, líderes brancos que se engajam na causa. Espero ainda ver o dia em que não serão contadas mais piadinhas racistas idiotas e supostamente inocentes em rodinhas de homens brancos. Não aceito e não convivo com pessoas que não entendem que esse modo de ver o mundo, essa visão típica do supremacista branco, que se julga superior, não dá mais. Mas infelizmente tem uma parte da população que não vai evoluir mesmo, que elege seus líderes políticos não por serem iludidos por eles, mas “conscientemente”, por terem uma mentalidade que ficou paralisada na década de 1960, no Brasil da democracia racial. Nesse sentido, os políticos são oriundos da sociedade.

E essa sociedade dominante é branca, é conservadora, é privilegiada, é racista, e não está disposta a abrir mão de seus privilégios. E isso vale para todos os ambientes, nos palácios da Justiça, no Congresso, nos poderes executivos federal, estaduais e municipais, na sala dos professores das universidades, nas salas de reunião dos conselhos das empresas brasileiras etc. Em suma, não vejo um futuro promissor para a igualdade racial no Brasil, em uma mudança rápida. Ela é lenta. E além de lenta, de 2018 para cá isso só piorou. Mas imagino Nelson Mandela dentro do cárcere por 27 anos, e ele não perdeu a esperança. A resiliência tem que estar na essência dos utópicos.

O que o senhor não recomendaria de forma alguma para uma liderança que queira iniciar processo de inclusão racial na própria empresa?

Fazer a promoção da diversidade para ficar bonito na foto, para aparecer no jornal, para fazer marketing, essa é a motivação errada, isso é diversity washing. As empresas e seus líderes devem ter uma única motivação, que é fazer o que é justo. Tudo mais vem como efeito colateral. Recomendo em primeiro lugar entender sua motivação.

O que acha que é necessário para que mais negros cresçam profissionalmente nas empresas?

Essa é a pergunta mais difícil de todas. Mas temos que começar de algum lugar. Programas de trainees, recrutamento e seleção cegos, ações afirmativas nas empresas, mentoring, programas de estágio, todas são ações interessantes que algumas empresas estão fazendo, com métricas, com metas. Mesmo assim, é uma mudança muito lenta. Parcerias com universidades deveriam ser um caminho a ser explorado. Mas se queremos ver alguma mudança concreta, precisaríamos fazer em todas as empresas, o que não é a realidade. Há algumas mais avançadas, outras começando, e muitas outras que nem têm a intenção de começar.

A luta antirracista e por maior igualdade racial no ambiente corporativo tem preço, precisa de investimento financeiro. O senhor consegue precificar o investimento?

Precisa de investimento financeiro, sim, precisa de assessoria especializada; se cada empresa for começar do zero, o processo é muito lento. O recomendável é trazer experts que tenham capacidade de acelerar o processo de inclusão da diversidade, e sobretudo da diversidade racial, que é, de acordo com todas as pesquisas, a que menos avança e a que menos possui iniciativas efetivas nas empresas. Mas por que será que a diversidade racial é a que menos avança, a que menos possui iniciativas dentro das empresas que têm algum programa de diversidade?

Acho que aqui estamos falando de algo muito maior que investimento financeiro, pois depende de consciência. E no caminho para alcançar essa consciência há a barreira fortíssima do racismo estrutural, que permeia as culturas das empresas de forma normalizada, naturalizada, invisível e, logo, impossível de combater sem conscientização.

O que o senhor acha das cotas raciais?

Sou totalmente a favor, na educação, nas empresas, no funcionalismo público, no Poder Judiciário, no Congresso, nas Forças Armadas etc. A ideologia da meritocracia prega a falácia de que todos devem se esforçar para conquistar algo e defende o princípio da igualdade de direitos. Ora, mas que igualdade de direitos? Que meritocracia? Se o ponto de largada dessa corrida é estruturalmente e profundamente desigual? As cotas dão tratamento desigual a pessoas profundamente desiguais. É uma forma de corrigir as injustiças estabelecidas em cinco séculos. Hoje temos ainda apenas 20% de universitários negros, mas antes das cotas eram muito menos.

O que o senhor diria para um jovem negro que sofre todas as mazelas de uma sociedade racista e ingrata como a nossa, mas que sonha chegar ao topo, ao cargo de CEO em uma grande empresa como a sua?

Que a batalha vai ser muito árdua. É árdua para homens brancos. É muito árdua para mulheres brancas. Para homens negros é dificílimo e, em especial para mulheres negras, é uma luta incrível. Quantos CEOs negros temos no Brasil? Mas que esse jovem negro se lembre de Mandela encarcerado por 27 anos, e continue lutando, até o fim.

Alguma outra colocação que gostaria de contar?

Sou branco, sou privilegiado, me beneficiei estruturalmente do racismo existente na sociedade, e não quero aceitar isso como normal para mim, para meus filhos e para as próximas gerações. O privilégio é anormal, os restaurantes só de clientes brancos são anormais, as salas de aula das escolas da elite, só com crianças brancas, não são normais. E não fazer nada a respeito é ser omisso, é aceitar seu privilégio, é ser racista. A luta é demorada, é frustrante, é inglória, mas o que fazer se não lutar?

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