InvisibiliDown: pais atípicos lutam por políticas públicas

Por: Janaina Bernadino

Olhos amendoados, orelhas mais baixas, dedos mais curtos e rostos arredondados. São por essas e outras características que crianças com Síndrome de Down são apresentadas, desde o nascimento. Identidade que apresenta alguns percalços durante o caminho e que quando se conectam a outros marcadores sociais, como a cor da pele, aponta um duplo preconceito: capacitismo e racismo.

Segundo dados do IBGE, no Brasil, há cerca de 300 mil pessoas com Síndrome de Down. Apesar de não haver uma diferença populacional entre negros e brancos, já que a incidência da síndrome é igual para qualquer raça, pouco se vê pessoas negras portadoras do então cromossomo 21, seja na publicidade, revistas, novelas e até mesmo no próprio google. Um cenário que ilustra, mais uma vez, o apagamento dos corpos negros, ainda que raça e fenótipo não alterem a chance da condição.

A falta de referência é real e a invisibilidade marcou o nascimento do pequeno Noah, de 3 anos, filho do ativista e idealizador do projeto InvisibiliDown, Thiago Ribeiro. Thiago conta que em Novembro de 2019, quando Noah nasceu e foi diagnosticado com a Síndrome, foi em busca de materiais que pudessem ajudá-lo a compreender quais ferramentas e estruturas poderia oferecer para o seu filho, uma criança negra com Down. No entanto, se deparou com uma realidade que não supria as necessidades de Noah e se surpreendeu com uma matéria que falava exatamente sobre essa invisibilidade.

“Eram mais de 500 comentários com pessoas dizendo que não existia pessoas negras com Down ou que nunca as tinham visto”, conta. Foi a partir dessa perspectiva que nasce o InvisibiliDown, uma forma que Thiago encontrou para compartilhar a vivência de Noah, através de fotos e, consequentemente, ir na contramão da invisibilidade.

“As fotos nunca foram por estética, mas sim por uma questão de denúncia. Com as imagens, eu estava dizendo que essa invisibilidade é uma postura estrutural, pelo fato de não vermos os nossos corpos adentrar em nenhum lugar”, destaca.

A procura de referências, o InvisibiliDown tornou-se uma rede de apoio, já que o Thiago, por meio do projeto, passou a buscar famílias negras que passavam pela mesma situação para fotografar. O objetivo era que esses núcleos familiares pudessem encontrar uns aos outros, o que não achavam nas pesquisas e materiais sobre o tema, sobretudo com o recorte racial. Hoje, essa rede se estende a países como Angola e Espanha e o projeto caminha para se tornar um instituto.

A mobilização do ativista não se fez de forma solitária, no meio do caminho, ele encontrou uma companheira de luta, Alyne Gonçalves, mulher preta, ativista e mãe da Maria de 11 e da Izadora de três anos, que assim como Noah também tem síndrome de Down. Juntos, somam forças na busca por garantia de direitos e políticas públicas para os pequenos, ainda que Alyne seja de Carapicuíba e Thi, como ela o chama, seja de São Paulo capital.

Maternidade atípica

A co-fundadora do InvisibiliDown vive na pele a maternidade atípica, uma vez que as especificidades vivenciadas por ela e Iza, enquanto mãe e filha, são distintas da típica maternidade em que a criança, por exemplo, não tem nenhum tipo de deficiência. Com a sua primogênita, a ativista já tinha uma clareza que a criaria em um ambiente machista e racista, com o nascimento da Iza, as interseções foram acentuadas e uma postura que já era ativa, tornou-se combativa.

Para o Yahoo, a mãe conta como foi o processo de desapegar de toda a expectativa gerada durante os nove meses de gravidez. “A gente sempre se questiona em como será que o bebê vai ser?’. No entanto, quando recebemos o diagnóstico, o bebê que você imaginou durante meses, morre”, relata. É a partir deste momento, então, que nasce uma mãe atípica.

Ela relembra que enquanto a Maria, sua primogênita, falou com oito meses de idade, a Iza, por exemplo, teve que ser ensinada a fazer cocô e a mastigar. Enquanto outras crianças se curam de um resfriado em um período padrão, a Iza leva cerca de dois meses para atingir o bem estar, porque a sua saúde é mais frágil.

Se preocupar se a inclusão escolar é coerente e eficiente ou até mesmo se a sua pequena, quando for mais velha, irá namorar e ter autonomia para as coisas básicas da vida, é uma das especificidades diárias que andam junto com Alyne, conectadas a uma explosão de amor, momentos de solidão, lutas e cansaço.

“É uma série de questões que você pensa enquanto mãe atípica, qualquer vento que sopra você acha que sua cria vai embora”, destaca. No entanto, Alyne faz um movimento contrário: enquanto a sociedade invalida a vivência de Iza, ela faz questão de ressaltar que sua filha pode tudo!

Políticas públicas

A rotina de Thiago e Alyne, enquanto pais atípicos e também negros, não é um caso isolado. Fátima Rebouças, assistente social com enfoque em atendimento de pessoas com deficiência intelectual, conta que além da invisibilização desses corpos, há também uma desumanização.

A assistente pontua que em seu ambiente de trabalho, famílias negras com integrantes Down, muitas vezes, foram lidas como barraqueiras ou briguentas. Ou seja, o racismo cotidiano opera em todas as áreas e escancara um tratamento diferenciado quando esses sujeitos são brancos. Uma realidade, inclusive, destacada por Thiago ao pontuar o impacto das problemáticas raciais e sociais no desenvolvimentos dos pequenos.

Ele conta que ao ter contato com os materiais de uma Associação de pediatria americana chegou a um dado significante, que expõe a expectativa de vida de pessoas negras e brancas com síndrome de Down. Segundo o documento, enquanto pessoas brancas podem chegar até os 50 anos, pessoas negras vivem no máximo 25. “A conclusão da pesquisa aponta a desigualdade e o racismo como um foco ao não acesso ao serviço de saúde de qualidade”, diz Thiago em entrevista para o Yahoo.

Cenário em que Fátima, enquanto agente social e irmã de Gerson Rebouças, também portador da Síndrome de Down, se coloca na linha de frente para que os atendimentos, em seu ambiente de trabalho, tenham um direcionamento especializado, de qualidade e antirracista. Ela ainda ressalta que há um avanço em relação às políticas públicas comparadas a 2010 e destaca a LBI, Lei nº 13.146, de 6 de julho de 2015 – Lei Brasileira de Inclusão ou Estatuto da Pessoa com Deficiência, que aponta a defesa e os direitos das pessoas com deficiência no país.

Mas, não deixa de recordar a luta diária que sua mãe enfrentou quando Gerson era menor. Hoje, já adulto com 36 anos. “Minha mãe não gostava de sair por medo de ser alvo de preconceito e dos apontamentos alheios: uma mulher preta, pobre com uma criança com deficiência intelectual. Não havia lazer ou tempo para diversão”, conta Fátima.

“E apesar dos direitos garantidos, eles não eram acessíveis, não sabíamos que o Gerson pagaria metade no ingresso para o cinema, que tinha direito ao passe livre ou desconto nas passagens aéreas. Essas informações, simplesmente, não chegavam até nós”, relembra. O relato de Fátima apesar de ocorrido no tempo passado, se faz presente e um dos seus maiores anseios é que a esperança por uma sociedade cívíl antirracista e indiscriminatória não seja um futuro utopico. Algo muito parecido com as motivações dos representantes do InvsibilDown

A falta de acesso aos direitos básicos é uma das premissas que o InsibiliDown tenta, diariamente, denunciar e, consequentemente, alterar essa perspectiva, mesmo que não seja uma responsabilidade efetiva e direta dos seus agentes sociais. O objetivo, portanto, é lutar para que essas crianças possam usufruir do que é deles por lei e garantir uma autonomia plena, com o acesso ao básico, começando pela intervenção precoce.

Segundo Alyne, crianças com deficiência precisam, assim que nascem, de intervenção imediata, são múltiplas terapias que vão nutrir o desenvolvimento dos pequenos desde o nascimento. No entanto, não é uma realidade para todas as crianças e é uma crítica cirúrgica dos parceiros, já que as demandas infantis são constantemente apagadas nas agendas.

O questionamento que fica é: se é assegurado por lei, por que não são todas as crianças que têm o contato com as terapias necessárias? Para Alyne, entre partidos de direita e esquerda, que na teoria e prática deveriam estruturar essas demandas, ela continua sendo mais uma mulher preta, lutando por uma criança preta. E, ressalta que essa pauta precisa de urgência para além de festividades,

“Não adianta fazer evento se você não está garantido que minha família tenha TO, que ela não tenha fome e que ela tenha acesso a fisioterapia. Data comemorativa não é política pública para minha criança”, destaca.

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