José Vicente: o líder otimista, inspirador e incansável da Universidade Zumbi dos Palmares e da 7ª Virada da Consciência
Por: Adriana Silvestrini
Do Morro do Querosene, um bairro pobre da cidade paulista de Marília, para o mundo. José Vicente é o filho caçula de bóias-frias que se tornou doutor em Educação, mestre em Administração e Direito, bacharel em Direito, além de ter feito outros cursos de especialização nos Estados Unidos e na Itália. Há 20 anos, ele criou e é o reitor da Universidade Zumbi dos Palmares, uma instituição de ensino pioneira na América Latina, pensada por e para pessoas negras. A existência e resistência por duas décadas da Universidade Zumbi dos Palmares e a figura do grande líder Zumbi dos Palmares são os homenageados deste ano da 7ª Virada da Consciência, que acontece de 16 a 20 de novembro, na cidade de São Paulo. Neste evento, durante cinco dias são oferecidas diversas ações culturais, educacionais, esportivas, de lazer e entretenimento para pessoas de todas as idades. Na programação tem os já conhecidos e aguardados Troféu Raça Negra, FlinkSampa – Festa Internacional do Conhecimento, Literatura e Cultura Negra, Corrida e Caminhada da Consciência, Congresso da Educação Antirracista entre outros. Confira a entrevista exclusiva que José Vicente concedeu à Raça.
Em 2024, a 7ª Virada da Consciência presta homenagem ao Zumbi dos Palmares e aos 20 anos da Universidade Zumbi dos Palmares. Vamos falar primeiro da importância do personagem.
José Vicente: Há mais de duas décadas atrás nós estávamos nas ruas para iniciar o processo de transformação da agenda dos negros em uma agenda de valor para o país, para as pessoas. E tudo isso estava sintetizado na Marcha de Zumbi. Então, a ideia era tentar fazer uma transmutação do Zumbi de um pária, de um marginal social para um herói de todos os brasileiros. Tudo isso foi se materializando e agora em 20 de novembro teremos o primeiro feriado nacional do Dia da Consciência Negra. Vamos tirar o Zumbi dos Palmares das catacumbas do marginal social para transformá-lo em um herói de todos os lados. Essa é a grande revolução cultural, a transformação e percepção de quem realmente é Zumbi dos Palmares.
Homenagear o Zumbi dos Palmares no primeiro ano em que o Dia 20 de novembro se torna feriado nacional é muito significativo.
José Vicente: A luta dele é grandiosa e envolve tantas outras boas conquistas e transformações, apesar dos pesares. Acho que o dia 20 de novembro deste ano será, de novo, um marco histórico.Vai ter um Brasil antes e um Brasil depois, na medida em que as pessoas conheçam quem é Zumbi de Palmares e o que ele representa. Se a gente tiver capacidade de replicar o Zumbi dos Palmares na sua qualidade de herói, contando sua trajetória, sua luta e os seus valores para todos os brasileiros, mudamos o país. Principalmente se a gente utilizar Zumbi como referência de ação propositiva, transformativa e revolucionária para todos os brasileiros.
Uma outra grande luta e conquista é a Universidade Zumbi dos Palmares, que completa 20 anos em 2024. Ela também será também homenageada na Virada da Consciência deste ano.
José Vicente: Do ponto de vista simbólico, a Universidade Zumbi dos Palmares é o melhor que o negro conseguiu produzir em toda a história do país. Nós chegamos até as escolas de samba, nos terrenos de Candomblé, mas nós nunca evoluímos além disso. Aqui temos duas características importantes, uma de forma autônoma e outra independente. Acho que isso é o legal porque toda a construção no país sempre esteve subordinada aos rumores governamentais e não foi o governo patrimonialista que estruturou a Universidade Zumbi dos Palmares, aqui é made by black people. Em qualquer lugar do mundo e no Brasil também, colocar uma ideia de pé até que não é muito difícil, mas mantê-la viva por 20 anos não é para qualquer um. Se a gente tiver a capacidade de comunicar bem, jogar uma sementinha por todo esse país, acho que a gente muda. Aqui tudo não só é inovador, tudo é pioneiro e extraordinário. Tudo que vocês olharem aqui, não verão em qualquer outro lugar do país, em qualquer outra instituição. Digo isso não porque nós somos extraordinários demais, é porque ninguém fez. Nós fizemos e todos podem e devem fazer também.
Como é ser o fundador e reitor da Universidade Zumbi dos Palmares?
José Vicente: É muito bonito e emocionante quando, por exemplo, eu estou sentado aqui e fico observando alunos e alunas negras passarem com seus cabelos para cima ou as moças estudantes de Direito com o sapato de bico fino. É uma alegria e agradeço a Deus permitir eu vivenciar isso. Lembro da primeira vez que a cantora e atriz Zezé Motta nos visitou. No segundo lance da escada ela sentou e começou a chorar de emoção simplesmente por este lugar existir. É inexplicável a emoção que a gente sente. Na Universidade Zumbi dos Palmares temos 70% de jovens negros e 30% de jovens brancos. Aqui, o negro e o branco estão na mesma sala, no mesmo corredor, no mesmo time de basquete. As nossas portas estão abertas para todos.
Como resultado de anos de luta, hoje a gente já vê a população negra ocupando espaços que antes ela não era aceita ou não era bem-vinda.
José Vicente: Isso mesmo! Conquistamos espaços, mas não podemos esquecer que ainda temos um imobilismo que nos mantém reféns ainda de um Estado escravocrata, de uma mentalidade escravocrata, de uma prática escravocrata e de uma ação limitadora. Então, o próximo passo para o futuro é romper mesmo essa bolha. Hoje você vê um ou outro negro dando autógrafo na Flip (Festa Literária Internacional de Paraty) mas antes eles não estavam por lá. Então criamos a FLINK Sampa (Festa do Conhecimento, Literatura e Cultura Negra) e mandamos o recado para o pessoal da Flip mostrando que se eles não recebiam os autores negros e as autoras negras, a gente ia recebê-los em nossa festa literária. E hoje tem negro até na Academia Brasileira de Letras. Essa foi a intervenção e a condução que fez essa mudança importante na literatura, por exemplo. Outro ponto é a chegada do negro na comunicação, a revista Raça, por exemplo, sucesso há 28 anos no mercado. E também o domínio dos núcleos da novela da sete da TV Globo, por exemplo, a novela Vai na Fé foi o maior sucesso e a que está no ar agora também tem muitos(as) atores e atrizes negros(as). Quem vê a novela só não sabe que para isso acontecer, há décadas atrás a gente não dava um minuto de paz na vida do Roberto Marinho e todo mundo do alto escalão da TV Globo.
Além do evento grandioso que é a Virada da Consciência, um projeto criado pela Universidade Zumbi dos Palmares, o que mais podemos esperar desta instituição pioneira na América Latina?
José Vicente: A 7ª Virada da Consciência é um evento incrível criado pela Universidade Zumbi dos Palmares que muito nos orgulha. A partir do dia 16 de novembro váriasaçõesculturais, educacionais, esportivas, de lazer e entretenimento acontecem para pessoas de todas as idades na cidade de São Paulo. A programação está imperdível (www.viradadaconsciencia.com.br). O nosso próximo desafio está aqui nesta maquete, que é o nosso futuro Museu da História do Negro. É um navio negreiro, estilizado, com prédios, ainda estamos construindo os caminhos para a realização deste museu. Talvez por conta deste museu a gente possa tornar realidade o sonho dos mais jovens que querem saber sobre os seus tataravôs e tataravós. Por incrível que pareça, depois de 400 anos, ainda não existe no Brasil um equipamento museológico como esse. Mas vamos fazê-lo com muita alegria assim como a gente fez todas as coisas até agora.