Judith Morrison

Quem chegasse a uma comunidade quilombola no Maranhão em meados dos anos de 1990 e perguntasse por uma gringa que estava vivendo e estudando lá no meio do mato numa comunidade quilombola jamais saberia que essa afro-americana chegaria tão longe. Hoje Judith Morrison cuida da Divisão de Gênero e Diversidade do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID). Com experiência em desenvolvimento econômico na América Latina, que inclui a negociação de acordos para promover desenvolvimento com o setor privado nas áreas de aço, construção, defesa, manufatura, transporte e tecnologia no Brasil, na Argentina e na Colômbia. Ela negociou o primeiro fundo de ecodesenvolvimento com o setor privado no Brasil e tem trabalhado por mais de 20 anos no Brasil. Ganhou o Prêmio da Inovação e Sustentabilidade do BID em 2014 e 2015 pelo trabalho promovendo o desenvolvimento sustentável no setor privado. Ela é autora de vários livros e artigos sobre desenvolvimento econômico com ênfase nos setores mais vulneráveis. Judith Morrison tem mestrado em distribuição de renda e desenvolvimento econômico no Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), onde recebeu o prêmio Carroll Wilson e foi fellow Woodrow Wilson. Neste mês em que comemoramos o dia da mulher negra latino-americana e caribenha não tinha como a RAÇA passar sem trazer aos nossos leitores uma entrevista de alguém que tem acompanhado passo a passo o desenvolvimento econômico sob o prisma de raça e gênero há mais de duas décadas nesta importante região do planeta.

A senhora acompanha as políticas de igualdade racial no Brasil há mais de duas décadas. O que acha que mudou no Brasil nesse tempo?
O Brasil passou a reconhecer as diferenças e particularidades raciais. O conceito de democracia racial acabou e, para mim, uma das evidências mais concretas é a publicação da revista “Retratos” do IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística no mês passado, onde o título na capa questiona diretamente o mito da democracia racial, perguntando “Somos Todos Iguais?” Acho que há 15 anos seria algo muito radical ter um título assim, principalmente numa publicação de um instituto tão técnico. Hoje em dia, esse título nem sequer virou notícia – que mudança!

O BID – Banco Interamericano de Desenvolvimento tem um papel estratégico na formulação e apoio a projetos de igualdade. Em que o Banco atua, apoia ou já apoiou?
Acho que o trabalho com o setor privado tem sido uma inovação importante na área da inclusão racial. O desenvolvimento econômico é uma área que apresenta muitas desigualdades. Nós sabemos que os afrodescendentes têm muito menos acesso ao trabalho formal, particularmente nos postos mais altos das empresas. Por exemplo, o BID publicou, em parceria com o Instituto Ethos e a Secretaria da Igualdade Racial da Cidade de São Paulo, um estudo sobre o perfil racial e de gênero das maiores empresas brasileiras, que revelou que os afrodescendentes formam algo como 35% dos quadros funcionais dessas empresas e são apenas 6% nos cargos de gerência. Envolver o setor privado nessas discussões tem um grande potencial para impactar de maneira significativa essas estatísticas. Além do trabalho com empoderamento econômico, nós também atuamos para uma
maior visibilidade das comunidades quilombolas no país e em projetos de sistematização de estatísticas (Brasil Quilombola na plataforma SINAPIR).

As empresas têm um papel fundamental na força de trabalho e no desenvolvimento social. Como a senhora vê a atuação dessa significativa parcela da sociedade na atuação das políticas de igualdade e gênero, no
Brasil e nos Estados Unidos?
As empresas são o motor para o crescimento econômico. Muitas empresas têm incorporado aspetos de inclusão e diversidade nas estratégias e políticas de negócios. Apesar de terem ocorrido muitos avanços, ainda existem poucas empresas que realizam o potencial da diversidade e inclusão para ter uma vantagem comparativa em relação aos seus competidores. No Brasil, devido ao tamanho da população afrodescendente e à ausência dos afrodescendentes em
muitos espaços estratégicos do setor privado, o argumento da vantagem da diversidade é mais forte de que em qualquer outro país da América Latina.

A senhora viaja muito pela América Latina por conta do seu trabalho no BID. Quais os países da região em que a senhora consegue ver mais avanços na questão racial nos últimos anos?
Os avanços são significativos na região em geral, mas existem alguns países que poderiam ser vistos como referências. É o caso do Uruguai, com importantes avanços legislativos e a transversalidade do tema no orçamento nacional. O Peru tem avançado também, em parte pelo estudo EEPA (Estudio Especializado sobre la Población Afroperuana), onde foi feito um levantamento detalhado
sobre a população afro-peruana e que contou com apoio do BID, entre vários outros atores nacionais. O Panamá tem grande potencial para avançar, a partir da recente criação de uma nova institucionalidade para a inclusão da população negra panamenha – Secretaria Nacional para o Desenvolvimento Afro-Panamenho (SENADAP). O Brasil também tem um destaque, com a consolidação de várias políticas de ação afirmativa, principalmente no ensino superior e na administração pública. Esses são alguns exemplos, mas existem muitos mais.

Quais as perspectivas que a senhora enxerga para a região da América Latina diante de uma política cada vez mais protecionista, com aumento de juros nos Estados Unidos e com a fuga de investimentos de países emergentes
como o Brasil?
Percebo que estamos passando por uma época de grandes mudanças.

A Colômbia, com a pacificação da guerrilha, tem sido um importante polo de ideias e práticas de políticas de igualdade, sobretudo no campo do reconhecimento da contribuição afrodescendente. Há lições que o Brasil pode aprender com a Colômbia no campo da igualdade racial?
Acho que uma das lições importantes da Colômbia seria a incorporação de afrodescendentes com os povos indígenas nos marcos normativos. Temos visto o uso dos povos afrodescendentes para refletir melhor a situação rural dos afrodescendentes no país e a consolidação de reconhecimento de territórios
e direitos no legislativo.

O BID tem um importante projeto em andamento sobre afroempreendedorismo em Salvador, Bahia. A senhora poderia falar um pouco sobre esse projeto?
O projeto em Salvador tem ênfase no turismo e desenvolvimento inclusivo dos afrodescendentes. É um projeto bastante interessante porque contempla o crescimento da cidade, mas com inclusão racial. Uma vez que o turismo impulsiona um grande mercado em Salvador e, como sabemos, a população afrodescendente na cidade é grande maioria, mais de  80%, o projeto é um excelente começo.

Como a senhora vê o atual estágio da luta contra o racismo no Brasil, nos Estados Unidos e no mundo nos dias atuais?
Acho que o Brasil continua avançando, assim como diversos outros países da região, mas existem indicadores de possíveis retrocessos nos Estados Unidos. Ainda estou otimista, porque o progresso na história geralmente não é linear. Sempre tem subidas e descidas durante o percurso, mas a trajetória vai na direção de melhoras.

Em que áreas a senhora acha que a luta por igualdade deve crescer nos próximos anos?
Vejo que há oportunidades no casamento entre diversas áreas de estudos e as possibilidades abertas pelas novas tecnologias. Precisamos encontrar maneiras de mobilizar jovens que estão interessados na questão racial, mas que não participam em movimentos formais. Por exemplo, como podemos garantir a esses jovens o acesso a boas informações e criar um espaço para
a discussão de propostas positivas? São questões que essa nova sociedade, cada vez mais conectada, pode discutir e avançar bastante.

Como as empresas podem ajudar na luta pela equidade racial?
Acho que as empresas devem enfatizar o recrutamento inclusivo e formação de capital humano. As empresas que priorizam essas áreas têm grandes chances de se tornarem líderes em seus setores e, ao mesmo tempo, contribuir para uma sociedade mais produtiva e igualitária. As empresas precisam trabalhar para ter uma representatividade racial nas firmas e documentar os resultados do processo. Acredito muito que a equidade racial poderia dar
melhor produtividade e uma grande sustentabilidade nos negócios.

Qual a significância da Epsy Campbell (vice-presidente da Costa Rica) para você?
Epsy Campbell se apresenta como uma pessoa brilhante, preparada e com muita experiência. Sendo uma mulher negra em sua posição, com forte reconhecimento da sua comunidade, ela é um símbolo na representação de raça e gênero, mas é também um símbolo para todos por seu nível técnico e sabedoria. Lembro quando ela foi eleita deputada e se tornou uma referência para jovens de todas as cores e gêneros.

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jornalista CEO e presidente do Conselho editorial da revista RAÇA Brasil, analista das áreas de Diversidade e inclusão do jornal da CNN e colunista da revista IstoÉ Dinheiro

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