Julho das Pretas: O esgotamento da população negra que luta há 135 anos por igualdade e justiça social
A população negra brasileira está esgotada! Não à toa, uma das frases comuns mais recorrentes que escuto, quando me encontro com colegas negros, sejam do empresariado ou do empreendedorismo, é: “estou esgotado” ou “estou esgotada”. Mas, de onde vem tanto esgotamento? O que está acontecendo com a população negra brasileira?
Quando pensamos na origem da palavra, partimos doverbo esgotar. Transitivo direto e intransitivo e pronominal que, por definição, significa algo como tirar ou esvaziar(-se) até a última gota; secar(-se). Portanto, estamos falando de subjetividades que precisam ser discutidas no campo real e hipotético.
Uma das teorias levantadas em uma conversa interna na Gestão Kairós, entre mim e a nossa especialista em raça a Dra. Fernanda Macedo, é a de que estamos em esgotamento por estarmos tentando, em uma única geração– talvez a primeira na qual isso seja de fato possível –, superar o abismo de desigualdades que foram impostashistoricamente para a população negra brasileira.
Neste sentido, temos diferentes estudos com vários parâmetros que nos dizem a mesma coisa. A probabilidade de uma pessoa que nasce hoje no Brasil, em situação de pobreza, quase sempre negra ascender e prosperar economicamente existe, mas é baixa. Listo aqui alguns números, um deles é de um estudo da Oxfam, disponível no relatório “A Distância que Nos Une – Um Retrato das Desigualdades Brasileiras”, que diz que teremos igualdade salarial entre brancos e negros em 66 anos. “Em vinte anos, os rendimentos dos negros passaram de 45% do valor dos rendimentos dos brancos para apenas 57%. Se mantido o ritmo de inclusão de negros observado nesse período, a equiparação da renda média com a dos brancos ocorrerá somente em 2089”.
Além desse, há um outro estudo, este do Fórum Econômico Mundial de 2022, apontando que seriam necessários 132 anos para a equiparação salarial entre homens e mulheres no mundo. Neste caso, se a projeção fosse feita a partir de hoje, teríamos essa igualdade salarial somente em 2155.
E por fim, o estudo que vimos recentemente – e que mais nos choca – é o Relatório da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE), apontando que o Brasil é um dos piores países em mobilidade social do mundo. O documento “O elevador Social está quebrado? Como promover a mobilidade social” diz que uma criança de família pobre levaria novegerações para atingir uma renda média. No Brasil, país em que sabemos que a maioria da população em situação de baixa renda é negra, afinal dos 13 milhões de pessoas na extrema pobreza no Brasil, 75% são pretas ou pardas, isso significa dizer que uma criança negra, pobre no Brasil, teria uma dificuldade imensa de chegar a fazer parte da classe média.
E mais, extrapolando os dados para a reflexão, como disse a Dra. Fernanda Macedo, Advogada e Consultora de Treinamentos da Gestão Kairós e Especialista em Diversidade Racial, isso quer dizer que uma pessoa negra hoje no Brasil talvez esteja trabalhando o equivalente a nove gerações de pessoas, tentando chegar a um padrão mínimo de prosperidade e de vida digna. Se considerarmos a classificação etária do IBGE (Jovens, Adultos e Idosos), que aponta uma diferença média de pelo menos 26 anos entre uma geração e outra, estamos falando de aproximadamente 234 anos para a população negra ascender ao nível médio de rendimento do país.
Quando lembramos que a abolição da escravidão foi há 135 anos, estamos falando que o mesmo tempo que temos para trás, do exato dia em que nossos ancestrais conquistaram a sua liberdade, com muita luta e totalmente desamparados de políticas públicas de moradia, educação, trabalho e saúde, é o tempo que teremos para frente para alcançarmos prosperidade para toda a população negra.
Infelizmente, neste Julho das Pretas, uma mulher, negra, nascida na extrema pobreza e que na infância morou em barracos de madeira, de 18 metros quadrados, chão de barro, segue sendo – em espaços de ascensão social no Brasil – uma exceção que comprova a regra. Hoje, sou Mestre em Políticas Públicas pela FGV, Conselheira Consultiva de Diversidade de grandes empresas, autora do livro Como ser uma Liderança Inclusiva, professora convidada na pós-graduação da FIA/USP, da PUCPR e do IBGC, com 12 prêmios de destaque, recebidos ao longo da minha carreira profissional. Alguém que trilhou um caminho de superação do imenso abismo de desigualdade existente no Brasil. Um caso de sucesso e certamente também posso dizer, assim como meus colegas negros exitosos, que estou esgotada.
Só há, portanto, uma coisa a ser feita: trabalhar com rigor, energia e constância, ainda que com um imenso esgotamento, para que possamos ver outras “Lilianes” na sociedade. Outras garotas oriundas da extrema pobrezaque consigam, ao longo de uma jornada de vida, seja com apoio das ações afirmativas, seja por meio de programas de gestão para a diversidade em grandes empresas, ou até pela ampliação da consciência social, galgar cada vez mais novos espaços.