Justiça branda e branca, no caso Rafael Braga
Nunca foi tão verdadeira esta expressão para definir a discriminação e o preconceito na sociedade brasileira. A condenação de Rafael Braga Vieira a 11 anos de cadeia no Rio Janeiro é um caso exemplar de como o racismo e o abuso de autoridade se combinam e articulam na produção da injustiça no Brasil. Rafael é jovem, negro, pobre, ex-presidiário e mora na periferia. Único condenado, após ter sido preso numa manifestação em 2013 contra o aumento do transporte coletivo na cidade.
A motivação para a prisão foi prosaica, pra não dizer risível – segundo os policiais que o prenderam, ele portava material “explosivo ou incendiário” (02 garrafas plásticas: uma de cloro e outra de Pinho Sol). A condenação tão dura por parte do juiz foi baseada, exclusivamente, nos depoimentos destes policiais.
Detalhe: Rafael Braga não estava participando da manifestação, não conhecia nenhum dos manifestantes, ia ao encontro de uma tia. Quem acompanha a atuação da polícia militar no Rio de Janeiro sabe muito bem do que ela é capaz de fazer, quando quer. Para tanto, basta que lembremo-nos do caso da estudante Maria Eduarda, morta fazendo aula de educação física numa Escola por uma pseudo “bala perdida”.
Em seu caminho, Rafael foi abordado por uma patrulha policial, que o encurralou num canto, o “esculachou”, querendo informações sobre traficantes da área. E ainda o ameaçaram: caso não informasse, seria acusado de tráfico e de terrorismo. E assim o fez, segundo o próprio Rafael. Nenhuma testemunha além dos policiais o acusou, nenhuma prova material foi encontrada, mas para o juiz isto foi o suficiente.
A afirmação feita pelo Desembargador Siro Darlan se aplica como uma luva para a condenação: “O sistema é seletivo e preconceituoso. O direito no Brasil é utilizado para punir aos indesejados da sociedade que, pelo perfil do nosso sistema penitenciário, são pobres e negros. “O caso é tão escabroso, que ganhou as páginas dos jornais, no Brasil e no exterior e, apesar da onda de conservadorismo pelo país, tem sensibilizado milhões de brasileiros, além de liderar o ranking das redes sociais. Ainda, tem provocado uma gigantesca onde de indignação, gerando mobilizações para reverter a sentença absurda.
Aliás, erro judiciário no Brasil não é coisa nova, o doloroso é que só ocorre com pretos e pobres, uma marca brasileira. O famoso caso dos Irmãos Naves, (Sebastião e Joaquim Naves) é um grande exemplo e em muito se assemelha ao de Rafael, por isto mesmo merece ser revisitado.
Em 1937, dois lavradores de Araguari (Triângulo Mineiro) foram acusados de assassinato e roubo de um primo e, mesmo com todas as provas contrárias, (pois a vítima está bem viva numa cidade vizinha), sem testemunha de acusação, foram presos e torturados durante meses. Sua mãe e esposas torturadas e estupradas, para que confessassem algo que não haviam cometido.
Após o martírio, comandado pelo delegado Chico Vieira (tenente da PM) e sua equipe, sucumbiram, confessaram e foram condenados a 25 anos. Testemunhas? O delegado e seus policiais, haja visto que nos autos não havia qualquer motivo para se duvidar dos policiais. Anos depois, foram descobertas as atrocidades contra os irmãos Naves, que foram absolvidos e soltos. Mas não puderam usufruir da liberdade, suas famílias estavam destruídas, bem como seus corpos, pois faleceram logo depois.
Lutemos para que não ocorra o mesmo com Rafael Braga Vieira, ou ao menos para que não sejamos nós, o Rafael de amanhã. Toca a zabumba que a terra é nossa!
Zulu Araujo
Foi Presidente da Fundação Palmares, atualmente é presidente da Fundação Pedro Calmon – Secretaria de Cultura do Estado da Bahia.
*Este artigo reflete as opiniões do autor. A Revista Raça não se responsabiliza e não pode ser responsabilizada pelos conceitos ou opiniões de nossos colunistas