Revista Raça Brasil

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Justiça Climática, Racismo Climático e o Protagonismo dos Povos Tradicionais: Reflexões da Minha Vivência na COP30

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Jandaraci Araújo

Executiva, conselheira e uma das principais vozes em governança, ESG e inovação no Brasil. Com mais de 30 anos de atuação nos setores público e privado, em temas relacionados a interseção entre finanças, sustentabilidade e transformação digital. Mestranda em Administração pela FGV, com ênfase em Bioeconomia e Finanças Sustentáveis, tem formação internacional por instituições como UCLA, Kellogg e EADA. Co-fundadora e Presidente do Instituto Conselheira 101, é reconhecida por sua liderança, Top Voice no LinkedIn, professora, escritora e TEDx Speaker.

Participar da COP30 em Belém tem sido uma experiência profunda e transformadora. Estar no coração da Amazônia durante a maior conferência climática do mundo é compreender, de maneira visceral, que a crise climática não é apenas uma urgência ambiental, mas também uma urgência social, territorial e racial. Ao transitar diariamente entre a Blue Zone e a Green Zone, ficou evidente para mim que o futuro das negociações globais passa, necessariamente, pelas vozes que historicamente foram silenciadas.

Na Blue Zone, tive a oportunidade de acompanhar reuniões diplomáticas em que representantes de dezenas de países discutiam financiamento climático, adaptação, transição justa e governança internacional. Ouvir diferentes delegações foi revelador sobre as disputas de poder que moldam o ritmo e a profundidade dos acordos. A dinâmica dessas conversas deixa claro que ciência, economia e política se entrelaçam com interesses geopolíticos complexos. Mas também mostra que nenhuma dessas decisões é neutra: quem financia, quem recebe, quem define prioridades e quem é afetado são questões centrais que precisam ser encaradas à luz da justiça climática.

Essa perspectiva se torna ainda mais urgente quando pensamos na realidade brasileira. Os impactos da crise climática recaem com maior intensidade sobre populações que menos contribuíram para ela — povos indígenas, quilombolas, ribeirinhos e populações negras periféricas. Esse fenômeno, conhecido como racismo climático, se expressa em enchentes, secas extremas, insegurança hídrica e alimentar, ausência de infraestrutura e vulnerabilidade ampliada diante de desastres socioambientais. Em cada debate técnico da Blue Zone, era impossível ignorar que essas desigualdades estruturais não são pano de fundo, mas o centro da crise.

Se a Blue Zone evidencia as tensões políticas globais, a Green Zone revela a vitalidade das soluções locais. Ali encontrei rodas de conversa, oficinas, exposições e diálogos conduzidos por lideranças indígenas, quilombolas, ribeirinhas, pesquisadores amazônidas, empreendedores comunitários e jovens ativistas. A pluralidade de ideias e saberes mostrou que a Amazônia não é apenas território de disputa geopolítica: é território de conhecimento, inovação, ciência viva e práticas sustentáveis milenares. A escuta atenta desses grupos reforça a convicção de que não existe transição ecológica possível sem a centralidade dos povos tradicionais.

Mas um aspecto chamou minha atenção de maneira desconfortável e merece ser registrado. Em várias mesas — tanto na Blue Zone quanto nos side events — observou-se uma tentativa recorrente de protagonismo de representantes do Sul e do Sudeste, especialmente de São Paulo e Rio de Janeiro. Houve painéis inteiros sobre Amazônia compostos exclusivamente por pessoas de fora da região, enquanto intelectuais amazônidas, lideranças indígenas e representantes das comunidades locais seguiam sub-representados. Essa dinâmica repete a velha prática de falar sobre a Amazônia sem permitir que a Amazônia fale por si. Embora seja uma questão complexa e que certamente merece um artigo próprio, não poderia deixar de mencionar essa reprodução de hegemonias, sobretudo em um evento sediado justamente no território amazônico.

Entre todos os momentos marcantes da COP30, poucos foram tão simbólicos quanto a Barqueata da Cúpula dos Povos. Assistir a mais de duzentas embarcações navegando pela Baía do Guajará, conduzidas por indígenas, ribeirinhos, quilombolas, pescadores, juventudes e movimentos sociais, foi testemunhar uma cena de profunda força política e espiritual. A imagem evocava, de forma potente, uma espécie de inversão histórica: quinhentos e vinte e cinco anos após a chegada dos colonizadores, são agora os povos das águas que avançam rumo ao centro das decisões, reivindicando vida, território e futuro. Para mim, foi o protesto mais emblemático desta COP — uma síntese da luta pela justiça climática em sua forma mais viva.

A COP30 deixa uma lição essencial: justiça climática é também justiça territorial, racial e democrática. As negociações internacionais precisam dialogar com os conhecimentos ancestrais que mantêm a floresta viva; precisam reconhecer que a proteção da Amazônia depende das pessoas que nela habitam e a defendem; e precisam garantir que povos indígenas, quilombolas, ribeirinhos e comunidades amazônidas não sejam apenas convidados, mas protagonistas da construção de soluções globais.

Transitar entre a Blue Zone e a Green Zone me permitiu ver a engrenagem completa: onde as decisões são formalizadas e onde elas nascem de fato. A Amazônia, sua gente e sua intelectualidade não podem ocupar papéis marginais em uma agenda que trata justamente da sua sobrevivência. O Brasil tem, neste momento, a oportunidade histórica de liderar o mundo com uma visão de clima que integra democracia, equidade, diversidade e respeito aos territórios.

E talvez, no fim das contas, seja isso que a COP30 nos ensina: que não existe futuro climático possível sem ouvir — e seguir — aqueles que sempre souberam cuidar da terra, das águas e da vida.

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