Por Monique Damas
Recentemente, três casos envolvendo crimes e ações penais ganharam destaque na mídia, revelando o abismo de tratamento por parte da Justiça brasileira. De um lado, temos o jovem negro MC Poze do Rodo, que construiu sua fama por meio da cultura do funk — expressando, com suas letras, as violências e ausências do Estado nas favelas. De outro, a deputada federal Carla Zambelli, que já cometeu diversos crimes, incluindo perseguição armada a um jovem negro nas ruas de São Paulo, além de ataques públicos contra ministros do STF. E, por fim, o comediante Léo Lins, que usou o palco para disseminar discursos racistas e gordofóbicos sob o pretexto de humor, ofendendo grupos que já são historicamente marginalizados.
A resposta das autoridades nesses três casos evidencia a seletividade do sistema penal. Com MC Poze, a polícia invadiu sua casa de forma truculenta, algemando-o na frente da esposa e dos filhos, sem permitir que sequer colocasse camisa ou sapatos. Foi tratado como um criminoso de altíssima periculosidade, e teve seu prontuário com informações sigilosas vazado para a imprensa — uma grave violação de seus direitos. Já nos casos de Zambelli e Léo Lins, não houve qualquer medida preventiva, tampouco exposição midiática. Não houve imagens de prisão, não houve constrangimento público.
Esse contraste deixa claro como o sistema de Justiça no Brasil é seletivo, racista e preconceituoso. Quando o réu é negro e favelado, a punição é imediata e exemplar — mesmo sem condenação. Quando o réu é branco, rico ou político, a presunção de inocência prevalece.
É importante compreender o que é prisão preventiva: trata-se de uma medida cautelar imposta antes do julgamento, utilizada apenas em casos em que há risco de fuga, ameaça à ordem pública ou à investigação. Mesmo sem condenação, MC Poze foi apresentado como um “bandido perigoso”, enquanto em crimes semelhantes ou até mais graves, como fraudes milionárias ao INSS, ninguém foi preso preventivamente ou exposto da mesma forma.
Na decisão que concedeu liberdade a MC Poze, o desembargador foi direto ao afirmar que, em casos de fraudes ao INSS — com prejuízos imensamente maiores — não houve prisão ou divulgação da identidade dos acusados. Isso mostra que, mesmo que raramente, o Judiciário admite sua própria seletividade.
Precisamos lembrar do princípio do “in dubio pro reo”, ou seja, na dúvida, decide-se a favor do réu. O réu é considerado inocente até que se prove o contrário — um direito garantido pela Constituição, mas que parece não valer quando o réu é negro e favelado, ainda que popular.
No Brasil, a Justiça tarda e falha, conforme a cor da pele de quem senta no banco dos réus. Com Zambelli, tanto tardou que lhe oportunizou fuga para os Estados Unidos, mesmo condenada pela mais alta Corte do país. Com MC Poze, a Justiça falhou voluntariosamente. Antecipou julgamento, expôs sua imagem e o entregou como um troféu à condenação das redes sociais e da mídia.
Diante de fatos tão evidentes, pode soar repetitivo afirmar que o sistema de (in)justiça criminal brasileiro funciona (e sempre funcionou) na lógica do “dois pesos, duas medidas”. Quando se trata de pessoas negras acusadas, atua peremptoriamente, com prisões arbitrárias, reconhecimentos equivocados e condenações injustas ou desproporcionais. Isso quando a polícia não se encarrega, ela própria, de acusar, julgar e aplicar a “pena de morte”. Quando somos vítimas, no entanto, a resposta do sistema de justiça costuma ser morosa e quase sempre condescendente com a prática dos crimes de racismo.
Voltando ao caso de MC Poze, as mídias racistas e elitistas não deram evidentemente a mesma notoriedade à notícia de sua libertação. Preferiram silenciar ou minimizar a comoção que tomou conta da multidão que esperava o retorno do jovem negro, preso injustamente, ao seu lar, sua família, sua comunidade.
Ainda tem quem diga que a “favela venceu”. É preciso, porém, dizer com franqueza: não, a favela ainda não venceu! Mas segue lutando por dignidade, igualdade e justiça.
Como diz um trecho da música criada após sua prisão por David Andrade (MC Ktriz): “Poze do Rodo pode ficar tranquilo, mexeu com a favela, quem mexeu contigo.”
Essa frase não é apenas verso; é recado ancestral; é pacto. É a certeza de que a favela é um mundo e não está sozinha; de que o que ainda hoje nos negam será cobrado com luta e resistência. No dia em que a favela, finalmente, entender a força que tem, muita gente vai respirar aliviada com o fato de que o povo negro no Brasil nunca quis vigança, mas não abrirá mão da justiça que lhe é devida.
Monique Damas é mulher negra e advogada criminalista, com especialização em Advocacia Criminal pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). É Diretora Executiva do Instituto Juristas Negras e gestora do projeto Mulheres & Cárcere: A liberdade é uma luta constante. Atua como conselheira pelo IJN no Conselho Nacional dos Direitos da Mulher e integra o Fórum Permanente de Violência de Gênero. É mestranda em Relações Étnico-Raciais pela Universidade Federal da Bahia (UFBA).