Juventude negra, periférica e contracultura

Por: Rachel Quintiliano

Eu tenho quatro irmãs e uma delas quando era adolescente andava com uma galera que curtia um tipo específico de rock, usava calça jeans surrada, coturnos, cabelo arrepiado. A maioria deles e delas, obviamente
eram pessoas brancas, mas existiam negros e negras, como a minha irmã (acho que ela foi punk – nunca
perguntei), que com muito sabão de coco e pente garfo conseguiam manter o cabelo estrategicamente arrepiado, mesmo depois de muito dançar, brigar com os carecas ou mesmo correr da polícia.

Depois de algum tempo, fui perceber que aquelas pessoas poderiam ser os tais punks da periferia, como compôs e gravou, o músico negro, Gilberto Gil, em 1983. Obviamente que a música “Punk da Periferia”, do álbum “Extra” não deve ter agradado muito os punks raiz, mas, para mim, que estava totalmente fora desse circuito e que pouco sabia do assunto, a canção ecoa na minha cabeça, mesmo sem saber por quê, até hoje.

A cena punk foi a primeira manifestação cultural, ops, de contracultura, para além do samba com que eu tive contato. Ainda que para muita gente parecesse estranho e até feio, eu achava muito interessante a forma de se vestir, o autocuidado como eles e elas defendiam suas posições, inclusive, ainda que de forma subliminar, o combate ao racismo, nas tantas conversas que eu escutava.

Depois de muito tempo conheci uma nova cena, nos anos 90, da galera que curtia skate, rock e que começava a abrir espaço para o hip-hop, expressão cultural com que me apaixonei um
pouco mais tarde.

Todos esses movimentos tinham presença massiva de pessoas negras. De um jeito ou de outro, as pessoas negras e especialmente as jovens estavam no centro da construção de novas referências de contracultura, construindo tendências, moda, comportamento e arte. Vejo o afropunk hoje, só me lembro disso. Mas, já volto a esse assunto.

Um dos lugares que mais frequentei nessa época, anos de 1990, era uma casa noturna no centro da cidade de São Paulo, que tinha um pequeno palco e um pequeno half (rampa) para andar de skate. Alguns dias eram dedicados ao rock e outros a um rap específico executado com banda. Nos intervalos dos shows ouvia-se, sobretudo, bandas como Cypress Hill – banda de rap underground norte-americana, que cantava muitas músicas em espanhol. que acontecia naquele momento, como um espaço de cultura negra, mas, certamente também era, na medida em que grande parte das pessoas que frequentavam e se apresentavam no pequeno palco eram negras e as letras das músicas sempre tinham como tema a discriminação, o racismo, a violência e as periferias e guetos.

Talvez esteja aí uma dificuldade minha com o rock até hoje. Talvez até uma raiva subliminar de não querer associá-lo enquanto uma produção negra. Certamente estou enganada. A contribuição negra para o rock é inestimável. Ao contrário do que eu pensava, os afropunks existiam e estavam por ali e por toda a parte, ainda que só reconhecidos, identificados ou autodeclarados bem mais tarde.

Essa revisão me encheu de esperança, quando tomei conhecimento sobre o Afropunk, o Batekoo, o Afrofunk e o Afrofuturismo. Quatro manifestações distintas, algumas mais antigas e outras mais recentes, mas que ganharam
grande visibilidade a partir dos anos de 2010, lideradas e realizadas por pessoas negras, geralmente jovens, de periferia, que inauguram novas contraculturas, que transbordam beleza, identidade e autoestima.

As juventudes negras são uma fonte inesgotável de inovação, tecnologia, criatividade e organização. Eu tenho muito orgulho e muita sorte de ter podido participar e observar, mesmo que de longe, isso durante quase três décadas. Essas juventudes negras, de diferentes maneiras, de forma intencional ou não, reforçam o coro do movimento social negro, pela garantia de direitos e ampliação de liberdades.

Comentários

Comentários

About Author /

Start typing and press Enter to search

Open chat
Preciso de Ajuda
Olá 👋
Podemos te ajudar?