Lea Garcia: “Eu não sou mãe preta”
Aos 86 anos, atriz integra seriado com elenco majoritariamente negro
Fazia tempo que Léa Garcia não aparecia na TV. Sua atuação em novela mais recente foi em 2017, em “Sol Nascente”; depois fez participações em alguns seriados. A atriz começou o ano renovada e vivendo a Dona Laura, na série “Arcanjo Renegado”, da plataforma Globo Play.
A personagem encontra o protagonista, Arcanjo Mikhael (Marcello Melo Jr.) no momento mais desesperador da vida dele, ao presenciar a morte da mulher que ele amava. Ela passa a ser quase uma mãe para Arcanjo. Para Léa, além da alegria de estar atuando, foi uma oportunidade de reencontrar amigos.
“Neste trabalho, encontrei pessoas que eu conheço desde que eram crianças, como o Marcello Melo Jr., que conheço o pai (Marcello Melo) e sempre respeitei muito o trabalho dele, e a Dani Suzuki, que estudou na mesma escola dos meus netos. E também reencontrei o meu querido ator Flavio Bauraqui, no dia da gravação, dentro do camarim; não contracenamos juntos na série, mas eu admiro demais o trabalho dele. Toda a equipe era muito boa e carinhosa comigo. O tamanho do personagem não importa, e, sim, estar trabalhando e realizando, estar presente numa obra que a gente tem certeza que vai ter uma repercussão muito boa e que tem muito a dizer””, destacou.
Com um elenco majoritariamente negro, a série uniu gerações. E Léa vê essa integração com bons olhos.
“Erika Januza, a Sheron Menenes, Juliana Alves, David Junior, acompanho o trabalho e o avanço dessa nova geração. Esse encontro com atores negros nas gravações é importante, mas eu não sou conselheira, nem mãe preta. Eu aproveito esses momentos para aprender e absorver o que eles têm para me dar e também espero que eles aprendam e absorvam o que eu posso passar para eles. É uma troca e que vem resultar numa soma.”
Léa comemora o fato de a inclusão do negro na dramaturgia estar aumentando, embora ainda a passos lentos.
“As coisas estão mudando, graças às políticas públicas e ao trabalho que o movimento negro vem fazendo, porque nunca ninguém nos concedeu nada. Sempre foi na base da conquista. Conseguiremos um lugar ao sol e uma sociedade igualitária quando o negro estiver ocupando todos os espaços.”
Com um vasto currículo no cinema, no teatro e na TV, Léa Garcia afirma que não tem um personagem marcante em sua trajetória. Destaca que gosta de tudo o que fez e, quando não gosta de algo, recusa o convite. A atriz só abre uma exceção para a vila Rosa, de “A Escrava Isaura, personagem que a popularizou, em 1976.
“A Rosa é meu cartão de visitas. É um personagem que as pessoas sempre têm como referência. Quando eu estive em Cuba com o elenco da novela, eu disse que se a Rosa tivesse nascido nos dias de hoje, seria uma mulher politicamente engajada. Estaria dentro do movimento negro, lutando por políticas públicas de inclusão do negro. Incomodava demais à Rosa que aquela mulher branca, a Isaura, tivesse mais privilégios que todo mundo. Rosa sentia que alguma coisa estava errada, mas ela não tinha noção, vivia dentro de uma fazenda e era analfabeta e não tinha uma visão maior, mas alguma coisa a incomodava. Então, ela lutava com as armas que tinha, dormia com o senhorzinho para fugir dos castigos. Se fosse uma novela atual, ela teria atitudes e posicionamentos que não a tornariam uma vilã, e sim, uma mulher reivindicando os seus direitos.”
Orgulhosa de sua profissão, ela só perde o sorriso ao ser perguntada qual personagem não atendeu às suas expectativas.
“Eu não gosto de fazer a mãe preta, não. Ela me incomoda muito do ponto de vista de quem nos dirige e nos produz. Digo, a mãe preta que cuida do filho do patrão branco. É importante sair desse lugar, desse estereótipo, porque nunca temos a visão do que se passou com essa mulher, ela é obrigada a viver aquilo. Não que ela fosse odiar aquela criança, mas sim viver essa situação, que não era confortável para ninguém.”
por FLAVIA CIRINO | fotos JULIANA COUTINHO