Lei de Cotas será revisada em agosto

Responsável pela crescente entrada no ensino superior de pessoas que se autodeclaram negras (pretas e pardas), a Lei de Cotas deve passar por momento decisivo em agosto deste ano, quando a ação afirmativa poderá ser revisada. A legislação, que desde que foi sancionada tem ampliado a presença de não-brancos em cursos concorridos, como medicina e direito, também foi bem-sucedida em diversificar as universidades públicas como um todo: dados da plataforma Quero Bolsa mostram que, entre alunos matriculados no ensino superior, negros eram 3 milhões em 2018 – número 75% maior que em 2014.

Pesquisa da ABPN (Associação Brasileira de Pesquisadores Negros), obtida com exclusividade pelo UOL, mostra que das 67 proposições que pretendem alterar a lei no Congresso Nacional, 31 podem prejudicar direta ou indiretamente a reserva de vagas para negros, 20 ampliam direitos garantidos pela legislação vigente e 16 são consideradas “neutras”, por abordarem temas como programas de assistência financeira para universitários cotistas e pós-graduandos – sem entrar no mérito da oferta de vagas.

De acordo com o levantamento, realizado de setembro de 2021 a janeiro de 2022, dez projetos que buscam eliminar o critério racial de reserva de vagas a pretos e pardos tramitam na Câmara dos Deputados. Entre eles, o de autoria da deputada Dayane Pimentel (União Brasil-BA). A principal justificativa em defesa desse tipo de projeto é que o critério socioeconômico deveria ser o único em consideração para a reserva de vagas.

“Se os brasileiros devem ser tratados com igualdade jurídica, ninguém deveria ser destinatário de políticas públicas por questão racial, mas por questões socioeconômicas. Cotas devem priorizar quem não tem condições financeiras, assim estaríamos englobando todos”, disse a congressista.

Crítico da política de cotas raciais, o deputado Doutor Jaziel (PL-CE) faz coro às propostas de Dayane. Na avaliação dele, a legislação deveria contemplar exclusivamente jovens de baixa renda e pessoas com deficiência. Em nota ao UOL, o parlamentar afirmou que “a educação superior pública deve ser de acesso a todo brasileiro, independente da cor”.

O sistema de cotas vigente para o ingresso em universidades e institutos federais de ensino reserva 50% das vagas para pessoas oriundas de escolas públicas. Desse total, 25% das cadeiras destinam-se a pessoas com renda familiar inferior a 1,5 salário mínimo; a outra metade é para pessoas com renda maior que 1,5 salário mínimo, contanto que tenham cursado todo o ensino médio em escolas públicas. Cotas para pretos, pardos e indígenas são reservadas de acordo com a proporção desses grupos no estado em que fica a instituição de ensino.

Segundo o professor Delton Aparecido Felipe, um dos realizadores da pesquisa da ABPN, as cotas raciais cumprem um papel estratégico e específico na sociedade, e não podem ser usadas para sanar problemas maiores de desigualdade no país.

“Quando pensamos no aspecto racial dessa lei, as cotas foram adotadas como estratégia de inclusão, a partir da luta do movimento negro, não para equilibrar relações desiguais, o que demandaria mais do que esforço jurídico, mas para mitigar os efeitos deletérios pela história brasileira”, explica.

No mesmo caminho, o diretor do Instituto Luiz Gama, Julio Santos, lembra que o Brasil não construiu, até o início dos anos 2000, nenhuma política estruturada para a inclusão da população negra na educação. Na avaliação dele, PLs que buscam limitar ou excluir completamente o acesso de negros à Lei de Cotas são “frutos de uma sociedade autoritária e agressiva, que trabalha para manter os privilégios e a falácia da meritocracia”.

Mudanças parciais

Ao todo, 13 proposições na Câmara e sete no Senado alteraram a legislação sobre cotas de forma lateral. Segundo a ABPN, isso pode impactar a reserva de vagas para a população negra e indígena.

Entre os projetos nessa categoria está o da senadora e pré-candidata ao governo do Distrito Federal, Leila Barros (PDT). A congressista propõe viabilizar o ingresso em cursos a distância, pelo sistema de cotas, de atletas convocados para seleções estaduais e nacionais de modalidades olímpicas e paralímpicas. Na ponta do lápis, para incluir mais uma categoria, a proposta reduziria o número de vagas reservadas a alunos negros e indígenas.

a senadora afirmou reconhecer a importância da legislação e que trabalha para que ela seja prorrogada e aprimorada. “Uma considerável parcela de brasileiros inicia a jornada esportiva em projetos sociais voltados para a população de baixa renda, majoritariamente negra no Brasil”, disse. “A carreira de um esportista é curta, o que torna ainda mais importante assegurar a todos esses jovens acesso pleno à educação”, completou.

Apesar de não estabelecer textualmente a retirada do critério racial, essa categoria de projeto acaba diminuindo o percentual previsto àqueles que historicamente têm sido vulnerabilizados, como negros, indígenas e pessoas com deficiência, pois propõe a entrada de grupos que historicamente não foram marginalizados no sistema de cotas. – Delton Aparecido Felipe, professor e um dos realizadores da pesquisa da ABPN.

No Senado, o levantamento da ABPN identificou que um PL em tramitação, de autoria do senador Fabiano Contarato (Rede-ES), propõe alterar a legislação para estabelecer o cumprimento integral do ensino fundamental em escolas públicas como principal critério de entrada pelas cotas nas universidades. Contarato afirmou que seu mandato defende negros, pobres, LGBTs, indígenas, quilombolas e demais grupos minoritários no Brasil.

Cotas por mais 40 anos

No ano em que a Lei das Cotas deverá ter seus efeitos questionados, um projeto de autoria do deputado Valmir Assunção (PT-BA) e endossado por mais 42 parlamentares adia para 2062 a eventual revisão da legislação. A proposição tramita em regime de urgência e deve ser votada a qualquer momento pelo plenário da Câmara.

Relator do PL e presidente do PSB na Casa, o deputado Bira do Pindaré (MA) diz que o texto aprovado em 2012 foi bem-sucedido em garantir o acesso de pretos e pardos ao ensino superior. Ele defende que eventuais aprimoramentos da legislação sejam embasados por debates sobre o êxito acadêmico de alunos negros e politicas contra a evasão nas universidades.

“O que importa para nós é que a desigualdade seja combatida efetivamente e que as metas sejam alcançadas de maneira estável, porque aí teríamos sucessivos ciclos de avaliação que iriam consolidar o entendimento de que finalmente não precisamos mais da Lei de Cotas”, afirma o parlamentar.

O congressista disse que vai propor alterações no texto original, como a inclusão de incentivo financeiro a estudantes cotistas e a reserva de 30% de vagas para estágio na administração pública federal.

“Outra alteração será para condicionar o fim da política pública ao cumprimento de metas, como a inclusão de incentivo financeiro aos cotistas inscritos no Cadastro Único, custeado pelo FNDE (Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação), sua permanência e graduação no curso escolhido e o êxito geral da política de cotas -e não a um prazo”, explica. Em nota, o gabinete do deputado informou que o relatório está pronto e que o parlamentar negocia a ratificação do parecer com líderes de outros partidos.

Qualquer um dos Poderes pode pedir revisão

O texto original de 2012 da Lei de Cotas previa que o Poder Executivo seria o responsável pela revisão da norma. Mas uma alteração na redação da lei em 2016 aponta apenas que “será promovida a revisão do programa”, sem especificar a quem cabe essa atribuição.

Dessa forma, as discussões para reforma da legislação podem ser iniciadas por qualquer integrante do Congresso Nacional, pelo presidente da República, pelo STF (Supremo Tribunal Federal) e demais cortes superiores, pelo procurador-geral da República ou pelos cidadãos. Neste último caso, deve ter subscrito 1% do eleitorado nacional, distribuído por pelo menos cinco Estados com não menos de 0,3% dos eleitores de cada um deles.

A avaliação entre interlocutores dos Três Poderes consultados pelo UOL, no entanto, é que é pouco provável que o Executivo ou o Judiciário busquem interferir nesse processo. Embora o prazo de revisão esteja estipulado para ocorrer em agosto de 2022, a mudança na redação da lei faz com que a data da realização seja uma incógnita.

Segundo a consultora legislativa de direitos humanos e cidadania no Senado, Roberta Viegas, a lei deve permanecer em vigor mesmo se não for revisada neste ano. Esse entendimento foi corroborado por comissão de juristas da Câmara dos Deputados em novembro de 2021.

“Isso não é pacífico, contudo, pois há quem defenda que a não revisão implica revogação”, afirmou. “Acredito que seja necessário realizar uma ampla discussão prévia à revisão da lei, com a participação de diversos atores sociais. Caso contrário, essa revisão não necessariamente atenderia às atuais necessidades da população alvo da Lei de Cotas”, diz.

O Ministério da Educação e a Secretaria Nacional de Políticas de Promoção da Igualdade Racial não se manifestaram.

Fonte: UOL

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