Revista Raça Brasil

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Liderança negra feminina e o apagamento simbólico: até quando teremos que provar o que já somos?

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Jandaraci Araújo

Executiva, conselheira e uma das principais vozes em governança, ESG e inovação no Brasil. Com mais de 30 anos de atuação nos setores público e privado, em temas relacionados a interseção entre finanças, sustentabilidade e transformação digital. Mestranda em Administração pela FGV, com ênfase em Bioeconomia e Finanças Sustentáveis, tem formação internacional por instituições como UCLA, Kellogg e EADA. Co-fundadora e Presidente do Instituto Conselheira 101, é reconhecida por sua liderança, Top Voice no LinkedIn, professora, escritora e TEDx Speaker.

Julho é um mês simbólico para nós. Um mês de afirmação, de memória, de luta e de presença. Celebrar o Julho das Pretas é celebrar a força histórica e contemporânea das mulheres negras que constroem esse país todos os dias — muitas vezes em silêncio, muitas vezes sem reconhecimento.

É também o mês de lembrar que o apagamento simbólico da mulher negra não começou hoje. Faz parte de uma estrutura que, há séculos, tenta nos empurrar para os bastidores da história, mesmo quando fomos protagonistas das maiores resistências.

Tereza de Benguela, por exemplo, liderou o Quilombo do Quariterê no século XVIII, sustentando uma estrutura política e econômica autônoma em pleno regime escravocrata. Foi uma estrategista, uma chefe de Estado em um tempo de brutalidade colonial. Ainda assim, quantos brasileiros conhecem seu nome?

Luiza Mahin, agitadora política, articuladora das revoltas que incendiaram Salvador no século XIX, inclusive a Revolta dos Malês. Uma mulher livre, letrada, muçulmana, estrategista — e até hoje tratada pela historiografia com reticências, como se sua existência fosse incômoda demais para ser plenamente reconhecida.

Essas mulheres foram lideranças — não só da resistência, mas da construção de um projeto de liberdade coletiva. Foram silenciadas não por falta de feitos, mas por excesso de potência.

Hoje, o apagamento simbólico continua — só muda de forma.

A mulher negra que ocupa espaços de liderança carrega mais do que responsabilidades técnicas ou estratégicas — carrega um corpo político, uma história de luta e um legado de resistência. Ainda assim, sua presença é constantemente questionada. E sua contribuição, muitas vezes, invisibilizada, diluída ou apropriada. É o que chamamos de apagamento simbólico.

Esse apagamento se apresenta de forma “elegante”, institucional. Acontece quando uma ideia sua é repetida por outro e a autoria é esquecida. Quando sua assertividade é traduzida como arrogância. Quando sua liderança é creditada a uma decisão coletiva, para não incomodar. Quando sua assertividade é traduzida como “arrogância”, e sua autoridade é lida como “inadequada”.

E isso se agrava quando muitos ainda não estão prontos para ver uma mulher negra liderando. Não estão prontos para serem liderados por alguém que quebra o imaginário colonial do poder. Há quem se incomode, mesmo que inconscientemente, com o fato de que ela sabe mais, estudou mais, se preparou mais. Ainda assim, mesmo sem a mesma formação técnica, alguns se acham no direito de questionar, diminuir ou deslegitimar. A ela, o benefício da dúvida nunca é dado — a dúvida já vem como sentença.

É preciso dizer com todas as letras: a liderança da mulher negra ainda é vista como um corpo estranho em muitos espaços de poder. Um corpo que precisa o tempo todo provar que merece estar ali. Um corpo que, quando avança, é questionado. E, quando brilha, é muitas vezes apagado.

Esse processo contínuo de deslegitimação gera adoecimento, esgotamento e cansaço profundo. Não se trata apenas de uma questão de representatividade — mas de reparação histórica e de permanência qualificada. Porque ocupar o espaço é apenas o começo. Permanecer nele com autonomia, voz e reconhecimento é o verdadeiro desafio.

 

Lideramos com ética. E é justamente isso que incomoda.

Não negociamos valores. Não jogamos o jogo da política institucional a qualquer custo. Trazemos para a liderança um outro projeto de poder: baseado na escuta, na transparência, no compromisso coletivo e na ancestralidade.

Nossa ética é firme, nossa visão é clara, e nossa autoridade vem da experiência e da excelência. Ainda assim, a misoginia e o racismo se camuflam em “críticas construtivas”, em “questionamentos técnicos”, em “percepções de perfil”.

Liderar sendo uma mulher negra é muitas vezes falar por todas, mesmo sendo silenciada. É construir mesmo quando tentam te desmantelar. É se levantar todo dia sabendo que não basta ser excelente — é preciso ser inquestionável. Mas até quando?

É como se a sociedade dissesse, de forma não-verbal:
“Liderança, sim — mas não com esse corpo. Não com essa cor. Não com essa coragem.”

Mas estamos aqui. Inteiras. Visíveis. Incontornáveis.

O Julho das Pretas é o mês em que reafirmamos que nós somos a continuidade de uma linhagem de mulheres negras que lideraram, mesmo quando o mundo disse que não podiam. O apagamento simbólico não se combate apenas com discursos sobre diversidade. Se combate com nomeação, com registro, com reparação.
Se combate com política institucional, com memória coletiva, com justiça histórica.  Porque nós já provamos o que somos.
Agora, é a história que precisa aprender a nos reconhecer.

Porque nós estamos aqui. E não vamos mais permitir que apaguem aquilo que construímos com suor, inteligência e ancestralidade.

 

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