Fundada em 1832 em Salvador, Bahia, dez anos após a independência do Brasil e entre duas das maiores rebeliões negras que o país vivenciou – a Revolta dos Búzios e a Revolta dos Malês – a Associação Protetora dos Desvalidos (SPD), hoje com 186 anos, é a mais antiga Instituição fundada e dirigida por negros na luta por igualdade. Com um patrimônio material e imaterial invejável, a SPD tem hoje, pela primeira vez em sua história, uma mulher negra como presidente: a advogada Lígia Margarida. Para falar dos desafios que essa instituição, criada com o intuito de proteger os desvalidos que, na época, eram os negros escravizados e hoje é a maioria da população brasileira ainda desprotegida, damos início a esta entrevista.
Quais os principais programas desenvolvidos pela SPD?
No início do século XIX, mais precisamente em 1827, a Irmandade do Amparo dos Desvalidos começou a ser idealizada e em 1832 ganha institucionalidade com o registro em livro de ata dos trâmites da sua criação. Pensada para desenvolver ações voltadas para resgatar a dignidade e autonomia dos escravizados, compravam- se cartas de alforria e, ao mesmo tempo, promoviam-se outros tipos de amparo, a exemplo de socorro aos doentes, apoio financeiro aos ganhadores e ganhadoras da época e assistência à família dos associados falecidos, dentre outras.
Assim, muitas foram as ações de assistência, mas, não era só isto, no campo de defesa por igualdade social podemos ler em relatórios existentes que eles se preocupavam com as políticas; um dos sócios da casa, o Manuel Quirino, foi vereador na cidade de Salvador. Podemos inferir que estávamos presentes nas lutas políticas, próximas das questões de discussão por igualdade de direitos na cidade de São Salvador. Hoje continuamos atuando em apoio ao movimento social da cidade de diversas formas, seja com ações de apoio aos associados, ou através de apoios a projetos sociais voltados para as questões ligadas à desigualdade social. Apoio a comunidades negras de vários países também é uma das nossas ações. Uma das mais significativas é a parceria com a Rota dos Quilombos, que realiza visita de experiência de Quilombos da Bahia e do Brasil. Então, temos ações que brevemente poderão compor nossos programas de forma mais perceptível.
Como manter a tradição, os hábitos, costumes e ter que conviver com a modernidade em uma instituição negra de quase 200 anos?
O diálogo é a única ferramenta para nos ajudar a manter harmonia entre a tradição e a contemporaneidade. Consideramos importante alimentar este elo. Os ritos tradicionais não podem ser obstáculos para fazermos as discussões atuais e necessárias. Este tem sido o exercício que fazemos diariamente. Vale ressaltar que não existe muita dificuldade, encontramos nos nossos arquivos escritos que por si só nos remetem a uma reflexão da importância de preservar a tradição. Por outro lado, alguns associados nos lembram com frequência os ritos e procedimentos que eram adotados pelos nossos antepassados para alcançar os objetivos da instituição. Enquanto isto, os acontecimentos do dia a dia da cidade, os problemas que passamos nos impulsionam a atuar nas questões emergentes sem logicamente esquecer os objetivos da casa.
Quais são as formas de manutenção e sobrevivência da SPD nos dias de hoje?
Manuel Victor Serra, o idealizador da SPD desde o início sempre criou mecanismos de autonomia. Inicialmente as joias, as mensalidades e contribuições livres dos simpatizantes e associados foram o grande pilar de sustentação. Temos na casa o cofre de três chaves, que é uma das provas de como eles conseguiam recursos para suas ações. Com o tempo, foram criando novas estratégias para mobilizar recursos, como a compra de imóveis para manter as atividades da casa. Compravam imóveis, reformavam, construíam e, até hoje, é a principal fonte de recursos para a instituição. Ressalto que mobilizamos recursos de diversas naturezas para manter as ações da casa. Para isto contamos com a firme colaboração de associados e interessados na história da SPD.
Quais os maiores desafios que uma instituição com a grandeza e o histórico da SPD encontra?
Os ideais pensados pelos 19 homens negros que criaram a instituição estavam ligados diretamente à garantia de direitos humanos do povo escravizado. Eles lutavam contra o racismo, contra a imposição religiosa e contra a desigualdade social. Na época usaram a lógica de “amparo aos desvalidos”.
E quem eram os desvalidos da época?
Hoje nosso desafio é fazer a releitura disso, aproximarmo- nos dos nossos “desvalidos” e contribuir para que os direitos sejam garantidos. Podemos citar a juventude negra, vítima diária do genocídio; a mulher negra vítima do racismo institucional; as crianças e principalmente as meninas que têm os seus direitos violados, quando lhes é negado desde a infância o direito de viver a sua infância, com altos índices de trabalho infantil, ausência de creches, evasão escolar na fase inicial de vida e tantos outros. Lutar por Justiça Social, igualdade de direitos e de gênero, liberdade religiosa, e respeito à diversidade aliado a inserir nos quadros da instituição uma juventude consciente e identificada com a nossa história, é o nosso grande desafio.
A história da SPD se confunde com a própria história de luta do povo negro da Bahia por igualdade e contra o racismo, porém as instituições mais contemporâneas como Olodum, Ilê Aiyê entre outras com menos de meio século de existência, optaram pela luta com um forte viés cultural e musical. O que difere é o que tem em comum a SPD com essas instituições mais contemporâneas?
Creio que temos muitos pontos em comum; afinal, vivemos na mesma cidade e os problemas que atingem o povo negro afetam a todos nós. As nossas lutas têm um único objetivo: contribuir para o bem-estar e bem viver do nosso povo. Seguimos juntos, queremos que o povo negro baiano tenha seus direitos respeitados. Mesmo que não ocorra com frequência um diálogo sobre o assunto, nossos objetivos se encontram ao longo da caminhada. Uma instituição, como a SPD, criada em 1832, depois da Revolta dos Búzios e três anos antes da Revolta dos Malês, época da repressão a toda iniciativa negra, quando ser candomblecista ou capoeirista era reprimido, até com pena de morte, facilmente compreendemos que eles elegeram outra estratégia aceita no período: “amparar os desvalidos”.
No entanto, o que faziam era muito mais que isso. Apoiavam ganhadores e ganhadoras, emprestavam dinheiro com juros baixos, criaram pecúlio, entre outras ações. Foram muitos os meios, mas o fim era o mesmo: empoderar o povo negro. Hoje os coirmãos, Olodum e Ilê Aiyê, gozando de mais liberdade no campo de expressão da nossa cultura e musicalidade, utilizam muito bem essas ferramentas e estratégias para reafirmar a nossa identidade numa linguagem acessível e perceptível por todos, lembrando que “somos negros e não temos vergonha disso”. O que nos difere são as estratégias utilizadas e a forma como elas são implementadas. O foco é o mesmo e seguimos caminhos diferentes, mas, chegaremos juntos na vitória do povo negro, quando o poder da cidade for nosso, lembrando os ideais pensados pelos revoltosos de Búzios e dos Malês.
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