Listão de julho: literatura negra e feminina

Neste mês julho, celebramos a Mulher Negra Latino-americana e Caribenha e, portanto, indico livros delas

Festas populares no Brasil, de Lélia Gonzalez

Trata-se do único livro que Lélia Gonzalez, pensadora, acadêmica e militante do movimento negro brasileiro, publicou em vida exclusivamente como autora. Escrita em 1987, a obra apresenta registros fotográficos de festas populares do Brasil de norte a sul com textos informativos que apresentam as marcas da herança africana na cultura brasileira, a integração entre o profano e o sagrado e a reinvenção das tradições religiosas na formação do imaginário cultural brasileiro

Da vida só tenho o fôlego, de Vani dos Santos

“Da vida só tenho o fôlego” é o primeiro livro da poeta Vani dos Santos (25/12/1951, 15/05/2021). Mulher negra e proveniente da periferia rural do estado de São Paulo, Vani é desconhecida do público, mas teve uma intensa produção poética, começando a escrever aos 29 anos, quando ficou viúva de seu primeiro marido, até seus últimos meses de vida, quando foi vítima da COVID-19. Trazendo em seus versos o olhar e a realidade elaborados sob a perspectiva do que Conceição Evaristo conceitua como “escrevivência” – as escritas poéticas de mulheres negras sobre seus próprios corpos e realidades –, a poeta viveu até os 15 anos em comunidades ribeirinhas, trazendo em sua obra um olhar profundo sobre a periferia rural brasileira. Para dar continuidade aos seus estudos, sua família mudou-se para a periferia de São Vicente em 1966, cidade onde morou até os seus últimos dias de vida. Em São Vicente, Vani concluiu o ensino básico, acessou a universidade, licenciando-se em história, e tornou-se professora concursada do estado de São Paulo, onde lecionou por 25 anos.  Com um acervo de mais de 600 poesias, a poeta deixou uma obra inédita que retrata a periferia rural, a desilusão com a igreja evangélica após sua precoce viuvez e uma crítica profunda às questões de classe e raça no Brasil: “Por que tenho que carregar esta roupa suja que não é minha?”, pergunta a pequena Vani em uma série de poesias com eu-lírico infantil que compõem o primeiro caderno do livro.

Publica, negra. Manual de publicação independente, de Sarau das Pretas

É a primeira publicação brasileira do gênero editorial voltada para um público muito específico: mulheres pretas. A obra proporciona às escritoras, mais do que o conhecimento técnico necessário para que possam editorar e publicar um livro de forma independente. Proporciona o resgate histórico sob a perspectiva étnica, racial e de gênero, evidenciando uma linhagem de escritoras pretas, que publicam de forma independente há quase dois séculos, mas ainda são invisibilizadas pelo mercado editorial.

As autoras reforçam o compromisso do coletivo Sarau das Pretas, de construir e fortalecer espaços potenciais de empoderamento para mulheres pretas e, por isso, com uma linguagem técnica, e ao mesmo tempo acessível, partilham o conhecimento acumulado em quase duas décadas de publicação independente.

Louças de família, de Eliane Marques

Forjando-se no terreno avermelhado pelo sangue das vacas, na fronteira entre Brasil e Uruguai, onde num armário de louças se confundem tiranos e subalternizados, negros e brancos, esta história começa com a morte de tia Eluma, empregada doméstica na cidade com nome de Ana. Quem responde por essa morte? Quem pagará o velório dessa mulher que se cria no batuque e morre na igreja universal do reino de deus? O que a narradora herda da tia e o que abandona?

Tendo a vida (e a morte) de tia Eluma como ponto de partida, a narradora puxa o fio que se estende à sua primeira ancestral conhecida da linha materna, passando por outras parentes suas que, para chegarem até aqui, limparam os pés nas pedras dos arroios lavando a roupa suja dos brancos. Entre os pontos altos deste Louças de família está a própria linguagem, que amalgama português, espanhol, iorubá e uma dicção literária surpreendente.

Água de barrela, de Eliane Alvez Cruz

As muitas mulheres negras presentes no romance Água de barrela, de Eliana Alves Cruz encontram no lavar, passar, enxaguar e quarar das roupas das patroas e sinhás brancas um modo de sobrevivência em quase trezentos anos de história, desde o Brasil na época da colônia até o início do século XX. O título do romance remete a esse procedimento utilizado por essas mulheres negras de diferentes gerações e que garantiu o sustento e a existência de seus filhos e netos em situações de exploração, miséria e escravidão. A narrativa inicia-se com a comemoração do aniversário de umas das personagens após viver um século de muitas lutas, perdas, alegrias, tristezas e principalmente resiliência. Damiana, personagem central para a narrativa, cansada das batalhas constante e ininterruptamente travadas pela liberdade, se vê rodeada por sua família e se recorda dos tempos de lavadeira

Redemoinho em dia quente, de Jarid Arraes

É um livro de contos sobre mulheres brasileiras que não se encaixam em padrões e desafiam expectativas. Focando nas mulheres da região do Cariri, no Ceará, os contos de Jarid desafiam classificações e misturam realismo, fantasia, crítica social e uma capacidade ímpar de identificar e narrar o cotidiano público e privado das mulheres.

Uma senhora católica encontra uma sacola com pílulas suspeitas e decide experimentar um barato que a leva até o padre Cícero (leia minha resenha sobre o conto clicando aqui), uma lavadeira tenta entender os desejos da filha, uma mototáxi tenta começar um novo trabalho e enfrenta os desafios que seu gênero representa ― Jarid Arraes narra a vida de mulheres com exatidão, potência e uma voz única na literatura brasileira contemporânea.

Insubmissas lágrimas de mulheres, de Conceição Evaristo

O elo fundido com técnica literária irrepreensível e grande força de sentimentos apresentado em “Insubmissas lágrimas de mulheres”, se revela um retrato de solidariedade e afeição feminina, por tocar no que é essencial, no que move, no que aproxima e une mulheres e, em espacial, mulheres negras.

Os afetos, reflexões e deslocamentos que os contos de Insubmissas lágrimas de mulheres nos causam, são frutos que só a boa literatura, a que salva, pode nos trazer, reafirmando o lugar de destaque ocupado por Conceição Evaristo na literatura brasileira.

A autobiografia da minha mãe, de Jamaica Kincaid

O romance conta a história de Xuela Claudette Richardson, filha de mãe caribenha e pai meio escocês e meio africano, moradora da ilha de Dominica. Sua mãe morre no parto, e a garota precisa então encontrar seu lugar no mundo sem o auxílio materno.
Kincaid conduz o leitor pela vida de Xuela com extrema habilidade literária: da casa de sua infância, onde ela podia ouvir o canto do mar, e da sala com telhado de zinco onde mora como estudante, até sua casa da velhice. Seu mundo é intensamente físico, cheirando a frutas maduras, enxofre e chuva; e ferve com sua tristeza, sua profunda simpatia por aqueles que compartilham sua história, seu medo do pai e sua solidão arrebatadora.

Com solenidade aforística, Kincaid explora todos os paradoxos desta história extraordinária, que, conclui Xuela, é ao mesmo tempo o testamento da mãe que ela nunca conheceu, da mãe que ela nunca se permitiu ser e dos filhos que ela se recusou a ter.

Cartas a uma negra, de François Ega

Antilhana, Françoise Ega trabalhava em casas de família em Marselha, na França. Um de seus pequenos prazeres era ler a revista Paris Match, na qual deparou com um texto sobre Carolina Maria de Jesus e seu QUARTO DE DESPEJO (leia minha resenha deste livro no site da Revista Raça). Identificou-se prontamente. E passou a escrever “cartas” — jamais entregues — à autora brasileira. CARTAS A UMA NEGRA, publicado postumamente, é um dos documentos literários mais significativos e tocantes sobre a exploração feminina e o racismo no século 20.

Sueli Carneiro, de Rosane da Silva Borges

O livro apresenta a trajetória de Sueli Carneiro, ativista antirracista do movimento social negro brasileiro. Feminista e intelectual, fundadora do Geledés – Instituto da Mulher Negra, Sueli é uma das personalidades políticas mais instigantes da atualidade. Entender sua história de vida, suas influências e as mudanças concretas geradas por sua militância é compreender parte do cenário espacial, político e geográfico do movimento social negro contemporâneo. A obra faz parte da Coleção Retratos do Brasil Negro, coordenada por Vera Lúcia Benedito e o objetivo da coleção é abordar a vida e a obra de figuras fundamentais da cultura, da política e da militância negra.

https://rachelquintiliano.substack.com/

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Jornalista com experiência em gestão, relações públicas e promoção da equidade de gênero e raça. Trabalhou na imprensa, governo, sociedade civil, iniciativa privada e organismos internacionais. Está a frente do canal "Negra Percepção" no YouTube e é autora do livro 'Negra percepção: sobre mim e nós na pandemia'.

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