Lute como uma Garota… Uma Garota negra

Redação Raça edição 239

Agosto de 2022 entra como o período mais esperado por aqueles que lutam por uma das causas mais nobres da humanidade: a luta por igualdade de oportunidades no campo da educação. Este mês começa a ser discutida pelo Congresso brasileiro a manutenção ou não das cotas raciais em nosso país no âmbito da educação. Lembro-me que quando ainda era diretor desta revista RAÇA e não CEO, há mais de uma década, encarei como primeiro desafio, fazer uma entrevista com Timothy Mulholland, na época, reitor da Universidade de Brasília, que estava sendo queimado em praça pública por ter instalado o sistema de cotas naquela universidade.

Hoje me encontro aqui entrevistando nada mais que uma filha deste sistema que, sem o qual, não teria adentrado em uma universidade. Primeira mulher negra presidente da UNE – União Nacional dos Estudantes, a jovem Bruna Brelaz é sagaz ao falar sobre a importância, não só de manter o sistema de cotas, mas do perigo que este sistema corre no atual momento pelo qual o país está passando, em que direitos básicos estão sendo usurpados do nosso povo. Acompanhe a entrevista exclusiva dada por essa importante liderança, que já tem seu nome marcado na história de nossas lutas e conquistas.

(Foto: Zanone Fraissat/Folhapress)

RAÇA: Mulher, negra, amazonense. É a primeira vez que alguém com esse perfil preside a UNE- União Nacional dos Estudantes. Como é isso?

Eu entendo como um grande avanço para a população nortista e para as mulheres negras, já que é um espaço de grande representação – são milhões de estudantes e jovens no país. Mulheres negras são a base da pirâmide social. A pressão econômica e da desigualdade nos impacta muito mais; por isso, amplificar nossa voz, nossas urgências é dar início a transformações importantes. O mesmo acontece com a região Norte, que recebe o menor investimento em educação, estruturas, ciência e saúde, mesmo sendo de extrema importância econômica e ambiental, e ainda há a urgência da preservação da Amazônia e, assim, poder dar megafone às demandas é uma grande oportunidade.

RAÇA:Você é um exemplo típico de uma política governamental de acesso à educação pública. Fale um pouco de sua experiência como a dirigente de uma instituição como a UNE e sobre a política educacional no momento.

Eu sempre estudei em escolas públicas e de referência, por um esforço da minha mãe, dormindo na fila para garantir a matrícula. Comecei no movimento estudantil, na UBES, após uma mobilização contra o aumento da passagem de ônibus. Depois presidi a UEE – AM (União Estadual dos Estudantes do Amazonas) entre 2015 e 2017. De 2017 a 2019, atuei em Brasília, como diretora de Relações Institucionais da UNE, compondo lutas, levando propostas e debatendo com lideranças políticas as urgências da educação e direitos dos estudantes. De 2019 a 2021, como tesoureira da entidade, chegando à presidência no ano passado. O Brasil tem um cenário devastador para a educação. O MEC se tornou um órgão de aparelho ideológico do governo e ainda um espaço de negociatas, com um orçamento sendo cortado sistematicamente em troca de manobras eleitoreiras. Recursos garantidos por lei estão sendo desmontados, como o Fundeb e o Fundo Social do Pré-Sal. Precisamos urgentemente discutir um plano emergencial para educação, não há nada mais importante que garantir seguridade a essa geração que está vendo seu futuro ir para o limbo por irresponsabilidade de um governo que odeia educação. Queremos virar esse jogo.

RAÇA: As cotas raciais passarão por uma revisão. O que esperar dessa reformulação no Congresso?

Por ser um ano eleitoral é possível que a revisão seja votada após o pleito, porém existe muita mobilização da sociedade para a sua continuidade. A UNE criou a campanha “Eu defendo as cotas”, que tem levado o debate às universidades de todo o país e na sociedade civil. Mesmo que não seja votada em 2022, a Lei fica valendo. Não será suspensa. É previsível que no debate haja o posicionamento de parlamentares e setores contrários à lei de cotas. Foi assim desde a sua implementação. Existem projetos de lei, atualmente em tramitação, que defendem revisão a cada dez anos, outro que defende a vigência de reserva de vagas e ações afirmativas por mais 50 anos e existem aqueles que defendem a retirada do critério racial, deixando apenas o social. Sabemos que esse último não reflete as necessidades brasileiras, uma sociedade permeada ainda pelo racismo estrutural. As cotas são uma vitória do povo brasileiro. Conquistamos a diversidade na universidade, pois acreditamos que é assim que os avanços podem acontecer. Se acreditamos que a educação é uma das portas para a construção do desenvolvimento de uma nação, não é possível desenvolvê-la sem a participação de negros, indígenas, PCDs e mais pobres. Não abriremos mão das cotas e nossa luta será permanente.

RAÇA: Qual a estratégia de intervenção está sendo desenvolvida pela UNE para que não percamos direitos adquiridos?

A UNE atua com a mobilização dos estudantes da sociedade e por sua presença em todo o país. Hoje, além do contato nas universidades, utilizamos as redes sociais. Além disso, realizamos articulação no Congresso Nacional, assembleias legislativas e câmaras municipais, levando as demandas dos estudantes, dos jovens e pela defesa da democracia. Construímos o tsunami da Educação, que mobilizou estudantes de todo o Brasil contra os cortes na educação e por mais investimentos. Nos movimentamos também através das calouradas, assembleias, congressos estudantis. Tenho orgulho e construir uma UNE de combatividade, com coragem e amor à educação e ao Brasil.

RAÇA: Você sofreu inúmeros ataques racistas e de incitações de ódio nas redes sociais. Como lidou com isso?

Não foi fácil, na verdade nunca é. No ano passado lutamos por uma frente ampla que pudesse reunir todos os setores insatisfeitos com o cenário de um Brasil de fome, desemprego, descaso com a educação e eu, como uma liderança estudantil, coloquei-me à disposição para construir essas pontes, fui duramente criticada. A crítica em si nunca será um problema na democracia, porém, para uma jovem, mulher e, ainda por cima, negra, as reações são uma enxurrada de comentários racistas, machistas do mais baixo calão. Surpreendeu-me as fontes desses comentários, que ficavam calados quando homens, brancos e mais velhos faziam os mesmos movimentos de diálogo. Isso para mim tem nome: violência política de gênero e com cunho racial fortíssimo. Nossa luta é para combater essas práticas. Identifiquei alguns agressores e recorri à justiça para que paguem por cada incitação ao ódio proferida.

RAÇA: Como você vê o atual cenário do jovem negro estudante?

O Brasil passa por uma crise econômica, com perda de renda das famílias, inflação alta, queda no emprego decente, uberização no mundo do trabalho. Somado a isso, os cortes na educação, que afetam políticas de permanência estudantil. Isso tudo cria um cenário hostil ao jovem, que é impactado diretamente com essa ausência de projeto de desenvolvimento. O Brasil precisa urgentemente sair dessa estagnação, implementar políticas para retomar o crescimento, uma vez que estamos atravessando o fenômeno “janela demográfica”, quando a soma da população economicamente ativa representa a maioria da população (mais do que crianças e idosos), e é o momento em que se espera um grande crescimento e desenvolvimento. Com esse projeto do governo atual, o ciclo foi interrompido, ou ainda pior, destruído.

RAÇA: O número de inscritos no Enem tem caído durante os últimos anos. A que você acha que se deve essa queda?

Existe uma ausência de projeto de educação no atual governo. Um país com tantos desafios educacionais e desigualdades, ter como prioridade homeschooling, colocar em proposta a cobrança de mensalidade em universidade pública, ter apenas manobras eleitoreiras que retiram recursos da educação, leva a uma educação sem perspectiva. Nos últimos anos, o Enem foi realizado em meio à insegurança com a pandemia, sem levar em conta a necessidade e vontade dos estudantes, e as desigualdades que surgiram na crise sanitária também. Além disso, existe a instabilidade sobre o desenvolvimento, cenário de desemprego, isso afasta os estudantes da graduação. No ano passado, o governo dificultou a isenção para aqueles estudantes que faltaram na edição de 2020, realizada em meio à segunda onda de Covid-19, que foi avassaladora. Na ocasião, ingressamos com uma ação no STF para reabertura de inscrições com possibilidade de isenção, mas não houve propaganda por parte do MEC para isso. E com isso muitos estudantes ficaram de fora.

RAÇA: Sabemos que a cota na universidade mudou a cara do ensino público nas universidades do Brasil. O que mais pode ser realizado para que mais negros e negras ingressem na universidade?

Precisamos ampliar a assistência estudantil para os estudantes que ingressam por meio de ações afirmativas, também ampliar as cotas para os Programas de Pós-Graduação e também em concursos públicos, em empresas. Que esse ciclo para redução de desigualdades não pare nas matrículas da universidade, deve haver conclusão do ensino e perspectivas de continuidade. Queremos entrar e, como diz a música do Emicida, “ir atrás desse diploma, com a fúria da beleza do sol”.

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