Machado de Assis e o fim da escravidão

Veja a participação de Machado de Assis, um dos maiores escritores brasileiros no fim da escravidão

 

TEXTO: Uelinton Farias Alves | FOTO: Creative Commons | Adaptação web: David Pereira

O escritor brasileiro Machado de Assis | FOTO: Creative Commons

O escritor brasileiro Machado de Assis | FOTO: Creative Commons

Em dezembro de 1861, pelas colunas do jornal Diário do Rio de Janeiro, Machado de Assis se referia assim ao amigo Paulo Brito, que acabava de morrer: “…foi um exemplo raro e bom. Tinha fé nas crenças políticas, acreditava sinceramente nos resultados da aplicação delas.” E, mais adiante, afirmava, com a certeza de quem conhecia bem o morto: “… tolerante, não fazia injustiça aos adversários; sincero, nunca transigiu com eles.” Francisco de Paula Brito (1809-1961) foi poeta, contista, dramaturgo, tradutor, mas passou à história como o primeiro grande editor brasileiro, responsável, inclusive, em sua tipografia, pela publicação dos primeiros jornais do país dedicados às lutas contra opreconceito racial, que foram O Mulato e O Homem de Cor, que ocolocaram como precursor da imprensa negra.

A simbologia do legado desse homem de origem negra é que fomenta no jovem Machado de Assis, seu aprendiz de tipógrafo, o seu principal ofício: o gosto pela escrita e o da defesa de questões sociais, como a escravidão e a república. Como seguidor de Paula Brito, defensor intransigente e acolhedor de novas e progressistas ideias, Machado de Assis passa a encarar o mundo com outros olhos, levando para sua vasta obra temas sobre a escravidão e a luta política que resultaria com a derrocada do regime monárquico brasileiro. E, logo ele, vindo da camada pobre da população, nascido no Morro do Livramento, filho de Francisco José de Assis, um mulato pintor de paredes, e Maria Leopoldina da Câmara Machado, lavadeira portuguesa dos Açores, Portugal, ambos agregados de Maria José de Mendonça BarrosoPereira, viúva do senador Bento Barroso Pereira, que abriga os pais de Machado de Assis, consentindo que morassem com ela.

As terras do Morro do Livramento, no entanto, cuja velha ladeira existe até hoje, permanentemente íngreme e estreita, eram ocupadas pela chácara da família de Dona Maria José e já em 1818 o terreno começa a ser loteado por ser tão extenso, dando origem à rua Nova do Livramento. Não obstante, Dona Maria José é convidada, pelos pais do menino, para ser sua madrinha e Joaquim Alberto de Sousa da Silveira, escolhido o padrinho, de modo que, ao resolverem homenagear os dois, o filho foi nomeado com seus nomes debatismo: Joaquim Maria Machado de Assis.

Com a perda da mãe aos dez anos de idade, logo a seguir, o pai se casa com Maria Inês da Silva, uma mulata que confeccionava doces que eram vendidos pelo menino Machado numa escola reservada para meninas. Dessa época, sua referência biográfica, na área educacional, é o padre Silveira Sarmento, a quem se tornou mentor de latim e amigo.

Enganam-se os que pensam que Machado de Assis não teve uma militância política. Desde jovem, o jornalismo e a poesia servem como os principais instrumentos para a sua atuação. Fosse no romance, na poesia, na dramaturgia, ou na crônica, erguia a bandeira aguerrida de defensor, à sua maneira, das causas sociais que tanto apaixonava o povo brasileiro, sobretudo os de origem africana. Em um importante livro sobre o tema, Machado de Assis Afrodescendente, o professor Eduardo de Assis Duarte, ao traçar-lhe o perfil, assegura que Machado “trabalhou por vários anos na segunda seção da Diretoria da Agricultura do Ministério da Agricultura, órgão que se ocupava justamente da política de terras e do acompanhamento da aplicação da Lei do Ventre Livre, e que chegou a ser dirigida pelo escritor”.

De acordo ainda com a mesma fonte, no ano da abolição, a Secretaria da Agricultura, pasta de Machado de Assis, cuidava bem dos processos referentes “ao elemento servil”. Segundo os relatos, a essa secretaria “deve-se a liberdade de milhares de escravos, liberdade que provinha da fiscalização vigilante dos dinheiros públicos, e da qual resultava grande aumento do número de alforrias pela diminuição do exagerado valor do escravo, pela irregularidade de matrículas e não cumprimento de preceitos legais.”

Portanto, é Machado de Assis, diga-se grosso modo, o gerente dessa operação que resultou no Treze de Maio. Logo ele que, desde menino, conviveu coma presença de negros escravos e livres; que, desde cedo, presenciou e conviveu com a realidade de negros e escravos, habitués das velhas chácaras do Morro do Livramento. O resultado disso foi o desenvolvimento de uma personalidade psicologicamente sensível aos temas da sociedade de então. Suas obras literárias e jornalísticas refletem bem esse estado de coisas.Como romancista e jornalista, poeta ou contista, cronista e ensaísta, Machado de Assis reproduziu temas factuais, presentes no dia a dia do cidadão carioca e fluminense da época.

Desde suas primeiras obras, a temática do negro, como um discurso contra a escravidão, mesmo sutil, é abordada de forma categórica, como o retrato de uma época desigual, o que pode ser encarado à guisa de denúncia ao opressor sistema político e econômico então vigente.

Tais temas perpassam, de algum modo, romances como Ressurreição, Helena, Iaiá Garcia, Memórias póstumas de Brás Cubas, Quincas Borba, Dom Casmurro, Esaú e Jacó e, seu último, Memorial de Aires. Assim também ocorre nos chamados “contos da escravidão”: Virginius (1864), Mariana, de 1871, ano da Lei do Ventre Livre, O caso da vara, de 1899, e o clássico Pai contra mãe,de 1906. Machado de Assis prima pelo talento, com requinte e estilo.

Machado de Assis e a abolição dos escravos

Aliás, nessa categoria exprime todo o seu dom pelo deboche e ousadia, mostrando-se velhaco e menos caramujo. É assim que vamos encontrar Machado de Assis nos anos finais da escravidão no Brasil. E a data de 13 de maio de 1888 vai encontrar outra cidade e outro país.

As ruas estão tomadas de gente. Caras alegres, contentamento geral;casas e lojas comerciais adornadas para o grande domingo de sol: a Regente Isabel vai sancionar no Palácio do Paço, que fica na atual Praça XV, a Lei Áurea. Uma multidão segue para aguardá-la. A sanção se dá em meio a grande ovação. “Não há mais escravos no Brasil”, gritam bocas entremeadas de choros e sorrisos. Casais se abraçam, namorados se beijam, crianças festejam com seus pais, homens públicos comemoram em bares, damas da sociedade abarrotam as confeitarias.

Um tumulto toma conta da cidade. Mas ao contrário dos anos de turbulência, é a festa, uma espécie de entrudo fora de época, que ataca as pessoas, de todas as classes sociais, seja dito. E no meio de tudo isso, está o caramujo Machado de Assis, já a essa época um dos escritores mais respeitados e queridos do país. É um homem como qualquer outro. Disse que nunca se sentiu melhor. Numa crônica da Gazeta de Notícias, descreve a cena: “Houve sol, e grande sol, naquele domingo de 1888, em que o Senado votou a lei, que a regente sancionou, e todos saímos à rua. Sim, também eu saí à rua, eu, o mais encolhido dos caramujos, também eu entrei no préstito, em carruagem aberta, se me fazem o favor, hóspede de um gordo amigo ausente; todos respiravam felicidade, tudo era delírio.” E concluída: “Verdadeiramente, foi o único dia de delírio público que me lembro ter visto.”

O júbilo popular, do qual estava integrado Machado, o levou ainda a escrever um lindo poema, dedicado à gloriosa data, impresso e distribuído em papel cartão por ocasião da procissão cívica que varreu o centro da velha Corte. Nesse poema, ao celebrar o fim da escravidão e se colocar ao lado dos vitoriosos, os ex-escravos e abolicionistas, ele conclamava a “união, brasileiros!”, e solicitava que todos entoassem “o hino ao trabalho”.
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