Por Shenia Karlsson
No Dia das Mães, enquanto muitas celebram tanto as alegrias quanto os desafios da maternidade, um grupo específico de mulheres encontra consolo e diversão em uma prática peculiar: os bebês reborn. Essas bonecas hiper-realistas, cuidadosamente confeccionadas para imitar recém-nascidos, transcenderam a categoria de meros colecionáveis – tornaram-se parte de um hobby que congrega mulheres em torno de uma experiência lúdica de cuidado, livre das exigências desgastantes da maternidade convencional.
No universo complexo e hiper-realista dos bebês reborn, uma questão fundamental se impõe: por que essa prática parece ser majoritariamente branca? E, além disso, de que maneira ela se relaciona com a história racializada da maternidade – na qual mulheres brancas, ao longo dos séculos, transferiram o cuidado de seus filhos biológicos a mulheres negras, enquanto experimentavam uma maternidade performática, isenta de encargos?
Bonecas e Infância: Um Privilégio Branco Historicamente Negado às Crianças Negras
Enquanto meninas brancas, desde o século XIX, brincavam com bonecas de porcelana, adornadas com rendas e tratadas como “filhinhas” em ambientes protegidos, as crianças negras eram brutalmente arrancadas de sua infância – seja pelo trabalho infantil escravizado, seja pela falta de acesso a brinquedos que as representassem.
As meninas negras escravizadas “quando” possuíam suas próprias bonecas – as Abayomis, confeccionadas pelas mães com retalhos de pano, nós e amor, carregavam uma mensagem silenciosa: “Mesmo em meio ao horror, você é amada. Mesmo distante de casa, você não está sozinha”.
Reborn como Continuidade de um Privilégio Histórico
Desde o período colonial até o século XX, a figura da mãe branca foi frequentemente idealizada como um ícone de pureza e afeto, enquanto o árduo trabalho de amamentar, limpar e acalmar os bebês era relegado a mulheres negras – amas de leite, mucamas e babás, muitas vezes escravizadas ou subjugadas. O bebê reborn, em sua perfeição estática e demanda inexistente, parece remeter a esse passado: uma maternidade estetizada, isenta de suor, noites em claro e sacrifícios.
“É como se, atualmente, essas mulheres brancas pudessem ‘brincar de mãe’ sem confrontar a realidade que suas antepassadas delegaram a corpos negros”, pondera a antropóloga Maria Ribeiro. O hobby, embora lúdico, não se insere em um vácuo: ele faz parte de uma estrutura em que a maternidade branca sempre foi opcional, enquanto a negra esteve submetida a um regime compulsório e exploratório.
Das Amas de Leite às Babás 24/7 – A Maternidade Branca e a Exploração do Trabalho Negro
A história da maternidade no Brasil é marcada por uma divisão racial brutal: enquanto mulheres brancas experimentam a maternidade como uma identidade afetiva (quando desejam), mulheres negras sempre a vivenciaram como um trabalho forçado – primeiro na escravidão, depois na precarização do trabalho.
Com a abolição que se revelou incompleta, as mulheres negras, atuando como mucamas e criadas, continuaram a cuidar dos filhos das elites sob condições que reminiscem a escravidão. Enquanto isso, seus próprios filhos eram deixados à própria sorte, crescendo à margem.
A lógica se perpetuou até a chegada das babás 24/7 no século XXI. Nos dias atuais, mulheres negras ainda representam a maioria na força de trabalho doméstico, especialmente nas funções de babás “integral” – residindo no local de trabalho, disponíveis a qualquer hora, enquanto mães brancas delegam não apenas o cuidado físico, mas também o afeto, o acolhimento e a rotina desgastante. Temos babás com registro CLT, babás que atuam como folguistas… mulheres brancas estão excessivamente ocupadas para exercer a maternidade.
O Reborn como Extensão Dessa Lógica
Haverá alguma diferença entre um bebê reborn e uma criança entregue limpa e bem-arrumada, após todas as suas necessidades atendidas, nas mãos de uma mãe branca? É possível afirmar que o fenômeno reborn está plenamente alinhado com a concepção de maternidade que as mulheres brancas têm historicamente construído. O bebê reborn é a expressão máxima da maternidade branca!
Neurose Cultural e o Reborn: O que Lélia González Nos Revela?
A filósofa Lélia González introduziu o conceito de “neurose cultural” para ilustrar como a elite branca brasileira reproduz traumas coloniais, criando ilusões de harmonia social enquanto ignora violências estruturais. No contexto dos reborns, podemos refletir: A boneca substitui o bebê “pronto” que era confiado a amas negras? Simbolicamente, a resposta é afirmativa. O reborn nunca chora, nunca adoece, nunca demanda – assim como a criança que é criada por outras mãos, longe do desconforto da mãe branca.
Enquanto mulheres negras continuam a lutar para que seus filhos reais não sejam vítimas da violência estatal, as bonecas reborn se transformam em meros produtos de consumo que obscurecem a essência do cuidado materno.
Neste Dia das Mães, a reflexão mais premente talvez seja: quem tem a prerrogativa de imaginar uma maternidade isenta de sacrifícios? E de que forma podemos descolonizar essa prática, resgatando as memórias silenciadas das mulheres que, ao longo da história, carregaram nos braços – e nas costas – as crianças de outros? E você, já considerou esses atravessamentos?
[Os textos assinados não refletem, necessariamente, a opinião da Revista Raça].