Me desculpa, Jay-Z!

Autor: Juliano Pereira

Jay-Z endureceu o discurso no Grammy, ao ser reconhecido pelo seu impacto social no mundo da música. No palco, ele disparou: “Alguns aqui, hoje, se sentiram roubados. Alguns realmente foram”. E emendou: “Mesmo pelas suas próprias métricas (organizadores do Grammy), a coisa não faz sentido”.

O rapper falava sobre a companheira Beyoncé e também de artistas negros que, ao longo de décadas, não receberam a atenção merecida. Questionava como a artista mais premiada da história (com 32 Grammys) nunca ganhou o maior prêmio (melhor álbum do ano). Seria como nunca ter dado ao Messi a bola de ouro de melhor jogador e fingir normalidade durante as premiações da FIFA. Pois bem, Jay-Z não pensou duas vezes em questionar o status quo.

Questionar. Questionar. E questionar. Para nós, pretos, pretas, mulheres, crianças, é a única opção. Seja questionar a abordagem policial – como o deputado estadual do Paraná, Renato Freitas, fez dias atrás. Ou por que as pessoas mudam de calçada ou seguram a bolsa quando veem uma pessoa preta andando.

Questionar é como aquele verso de rap que incomoda, que joga luz onde não se quer enxergar. Confesso que já me calei muito mais no passado. E quando me perguntam por que eu sou “boca dura”, penso se estão me chamando de mal-educado ou se o que falo incomoda. Papo reto! Falo também por uma maioria, sem voz, que tem mais boleto do que liberdade para questionar. Seja o preço do gás, do salário baixo ou do marido alcoólatra e abusivo.

No meu caso, questionar vem de berço. Da minha mãe, que não abaixava a cabeça pra patroa que a tratava como propriedade. Folga a cada 15 dias. Comer depois de todo mundo. Jornada diária de 12, 14, 16 horas. Cresci ouvindo como ela, faxineira, respondia às situações que vivia diariamente. Coisas como:

“_ Moço, eu quero 2 quilos dessa carne.

_ Mocinha, essa carne é muito cara. Sabia?

_ Sim. E não estou perguntando o preço. Não posso comprar porque estou com uniforme de doméstica?

Mas o meu maior combustível foi a música. Letras como “Capítulo 4, Versículo 3” puseram fogo no parquinho. Curioso ouvir a música, 25 anos depois, e sentir o mesmo incômodo. Recentemente, o hip-hop fez 50 anos, enaltecido no enredo da Vai-Vai. É entrar pela porta da frente. Muito merecido! Assim como minha mãe que brinca com os netos no parquinho onde levava as filhas da patroa. Pra mim, é a redenção. 

Agora, nem tudo são flores. Há ainda quem sustente que o rap faz apologia ao crime, que é coisa de vagabundo. Dúvida? Quando questionado a respeito, o Emicida respondeu, brilhantemente:

_ “Essa pergunta é preconceituosa. Se o rap faz apologia ao crime por falar da realidade de milhões cercados pela violência, então o programa do Datena também faz apologia ao crime.”

Pelo contrário, o rap questiona “por que a gente não pode ser tratado igual gente?” Ou “por que sou parado na blitz toda semana?”. “Sabia que as crianças do morro não têm comida nem educação decente?”. Fico pensando se é tão difícil assim entender a situação pra quem mora em casas com luz, esgoto e paredes pintadas.

50 anos de rimas. Se não fosse o rap, quantas vidas mais seriam perdidas? A gente pode discordar da forma, da intensidade e do tom. Mas não dá pra ouvir “Negro Drama” e não se emocionar. História forte, fulminante. O flow, a batida e rima, talvez sejam a mais impactante ferramenta disponível para dizer: “Eu não consigo respirar!”.

Viva o rap. Viva o hip-hop. E parafraseando o Baco Exu do Blues, “me desculpa, Jay-Z”.  Acho que você falou foi pouco. Devia ter tomado o microfone, chamado a Beyoncé no palco e entregue o merecido troféu para ela.

Colunista: Juliano Pereira

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