Por Dra. Ionata Smikadi, médica especialista em dor e cuidados paliativos.
O racismo estrutural na medicina possui raízes profundas e históricas, marcado pelo uso antiético e exploratório dos corpos negros em pesquisas científicas. Um exemplo emblemático foi o experimento de Tuskegee (EUA, 1932-1972), no qual homens negros com sífilis foram deliberadamente privados do tratamento com penicilina, mesmo após a descoberta de sua eficácia. Outro exemplo histórico chocante é o da ginecologia moderna, desenvolvida pelo médico James Marion Sims no século XIX, por meio de experimentos realizados sem anestesia em mulheres negras escravizadas.
No Brasil, a realidade reflete práticas semelhantes. O racismo na medicina manifesta-se claramente na subestimação da dor e dos sintomas relatados por pessoas negras, resultando em menor administração de analgésicos, dificuldades no acesso a tratamentos preventivos e barreiras significativas ao atendimento especializado e humanizado. Estudos indicam que mulheres negras têm três vezes mais chances de morrer por complicações durante a gestação e parto em comparação às mulheres brancas. A raça, embora não tenha base biológica concreta, é frequentemente usada de forma incorreta como fator preditivo para doenças, quando deveria servir como ferramenta para compreender melhor contextos históricos, sociais e econômicos que afetam diretamente a saúde.
Um exemplo recente dessa discriminação estrutural na sociedade foi o caso do rapper MC Poze, detido de maneira vexatória e coercitiva sob acusações de associação ao tráfico de drogas. O tratamento recebido por ele foi notoriamente diferente daquele dado a Roberto Jefferson, que, após disparar mais de 50 tiros contra um carro da Polícia Federal e ferir uma policial, foi conduzido à delegacia tranquilamente, sem violência e respeitando sua integridade. Tal discrepância evidencia claramente como a abordagem policial e institucional varia de acordo com a cor, perpetuando a criminalização e a marginalização das pessoas negras.
O contexto do Sistema Único de Saúde (SUS) brasileiro torna essa realidade ainda mais grave. Cerca de 70% da população atendida pelo SUS é preta e pobre, segundo dados oficiais do próprio SUS. O subfinanciamento crônico, persistente desde sua criação, agrava ainda mais a desigualdade racial e social, resultando em mortes evitáveis devido à falta de infraestrutura adequada, equipamentos e profissionais qualificados. Além disso, há uma disparidade racial evidente entre os profissionais de saúde: médicos e profissionais de nível superior são majoritariamente brancos, enquanto trabalhadores técnicos, administrativos e auxiliares, frequentemente submetidos a condições precárias de trabalho, são predominantemente negros.
Os médicos negros frequentemente enfrentam desafios específicos relacionados à discriminação racial dentro das instituições de saúde. São alvos constantes de questionamentos sobre sua competência, autoridade e legitimidade profissional, enfrentando diariamente o racismo institucionalizado, que impacta diretamente sua saúde mental e emocional.
Diante desse cenário preocupante, combater o racismo estrutural na medicina é uma tarefa urgente e imprescindível. Médicos negros têm um papel fundamental nesse processo, proporcionando representatividade, ampliando a conscientização sobre questões raciais na prática médica e promovendo uma medicina mais humanizada, equitativa e inclusiva, assim como profissionais brancos que apresentam firme consciência e se posicionam contra o racismo. Por isso, é imperativo avançar significativamente de forma coletiva, envolvendo a responsabilização das instituições públicas e privadas, bem como uma mobilização ativa da sociedade civil.
A implementação de políticas públicas eficazes voltadas à equidade racial, investimento robusto na infraestrutura, capacitação dos profissionais do SUS e criação de redes de apoio emocional e institucional para profissionais negros são ações indispensáveis. Apenas com um esforço conjunto, abrangente e contínuo, será possível desmantelar o racismo estrutural, garantindo uma saúde digna e equitativa para todas as pessoas, independentemente da cor da pele, fortalecendo a justiça social e promovendo a verdadeira transformação na sociedade brasileira, que se inicia em cada um de nós.
Dra. Ionata Smikadi
Especialista em Dor e Cuidados Paliativos pela PUC Minas, Dra. Ionata Smikadi (CRM 1233203) se formou em medicina pela Universidade Estácio de Sá e fez diversas especializações nacionais e internacionais, entre elas: fellowship na Columbia University de Nova York; Acupuntura, pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e Teorias da Diáspora Africana, na Universidade do Texas, em Austin. Mestre no curso de extensão em Saúde da População Negra da UERJ (Universidade Estadual do Rio de Janeiro), a médica carioca fundou o Instituto Luiza Mahin, a primeira associação médica negra do Brasil.