Moda e organização antirracista
Por: Carol Barreto | Assistente de redação David Santos
Carta aberta a brancos brandos de coração:
O fogo de uma epistemologia preta está balançando a branquitude e sua estrutura racista. Sempre esteve, mas nos perguntamos: por que somente nos enxergaram agora? Sabemos que o silêncio é cúmplice da violência, por isso precisamos reforçar a nossa organização como povo preto, para fazer cobranças específicas por área e reivindicar o que é nosso, por direito. No período que apelidamos de “Mês da Culpa Branca”, vimos, num curto espaço de tempo, as vestes e as artes pretas ganharem o foco das mídias hegemônicas, o que também nos conduziu ao feliz encontro com nossos diversos corpos, lutas e narrativas, que nunca ganharam esse destaque nos meios de comunicação, o que contribuiu também para mapear e visibilizar o tamanho da nossa potência.
Será que, entre os posts de quadrados pretos nas redes sociais, existem questionamentos sobre os privilégios simbólicos e materiais que integram a minoria numérica de pessoas brancas no Brasil? Nas várias entrevistas que me fizeram nesse período, junto com pedidos de “ajuda”, eu fiz várias perguntas. E, na principal delas, devolvi nas interlocuções:
“Qual preço de ser antirracista?”
No meu mundo, é a morte! Entre ironias de uma dor que nunca é realmente vista, reivindicamos nosso espaço, pois como a pesquisadora Joice Berth diz: “Não me descobri negra, fui acusada de sê-la”.
Para efetivar uma prática antirracista, as frases e ações emergenciais da rede social não são sufi cientes, pois, a real mudança se constrói com investimento – independentemente do aporte financeiro disponível. Portanto, cara gente branca, em primeiro lugar, questione-se, repense seu status quo, procure compreender que a ideia de superioridade, pautada nos seus privilégios materiais, foi constituída a partir da violência, do genocídio e do etnocídio dos povos indígenas e descendentes de África. Se quer contribuir, leia escritoras pretas, compre nossa arte, fortaleça nossa luta se colocando na posição da escuta, sendo útil sem querer protagonizar; e, especialmente, reveja os princípios da sua cultura que já foi internalizada e normalizada como apropriadora, racista e misógina. Este é o verdadeiro caminho para um amanhecer onde todas as pessoas possam, de fato, compartilhar de oportunidades menos desiguais.
Nesse contexto, aqui destacamos a Célula Preta, como uma iniciativa criada por e para pessoas pretas, que surge para repensar a moda. Formada por sete marcas que participam da Casa de Criadores: Diego Gama (@y.diegogama), Theo Alexandre (@ thearvestuario), Gui Amorim (@estudiotraca), Weider Silveiro (@weidersilveiro), Fábio Costa (@notequal), Pedro Batalha e Hisan Silva (da @ dendezeiro_) e Jal Vieira (@jalvieirabrand), única mulher do grupo e porta-voz de algumas ações em sites e outras mídias hegemônicas, como voluntária.
Fruto do grito “Vidas Negras Importam’’, a Célula Preta surgiu a partir de um encontro virtual proposto por Rafael Silvério, onde foram apontadas as necessidades de uma organização: “esse diálogo perdurou por alguns dias, culminando, então, em uma célula independente, respaldada pelo diretor criativo do evento, André Hidalgo”. O foco principal entre participantes pretxs, é desmistificar conceitos enraizados na estrutura racista presente no universo da moda, e tentar abrir caminhos para uma nova construção, rica em pluralidade racial e de gênero. A garantia de representatividade, visibilidade e equidade são os princípios de luta da Célula. Compreendendo que o racismo foi criado pela branquitude, e como produtora e sustentadora de suas bases, as ações do coletivo buscam ir além de entender essa estrutura, mas se posicionar publicamente contra, elaborando e cobrando ações. O genocídio da população negra brasileira está presente na indústria da moda, em processos de apropriações onde designers brancos, usufruindo da nossa resistência cultural, esvaziam o sentido de símbolos sagrados e das nossas vestes ritualísticas e tradicionais. Abdias Nascimento reflete profundamente sobre este aspecto ao declarar:
“Quando se mata uma cultura, se mata um povo”. Por isso, destacamos que o embranquecimento da nossa arte é uma estratégia do etnocídio que sustenta o genocídio, por isso fiquemos atentas com as propostas de “inclusão”. A Célula Preta é o início de uma encruzilhada brilhante e contrahegemônica. Viva a moda preta e que Exu tome conta!
Quais as ações efetivas contra as dificuldades de marcas lideradas por pessoas negras?
Começaremos com um mapeamento e uma ação de escuta, criando um canal de comunicação facilitador para isso. Um banco de dados em que possamos também contemplar profissionais de todas as áreas das indústrias, facilitando o acesso de quem quer ter essa troca com os profissionais pretos. Busca de parceiros na indústria para a abertura de diálogo, efetivando articulações que promovam equidade, dando as mesmas oportunidades que são concedidas aos brancos. Faz parte das propostas da Célula, pensar em ações que mudem as estruturas dos eventos de moda e a forma como esta área se constrói. Pensar em castings diversificados e inclusivos, entender e humanizar as demandas de profissionais pretos dentro deste universo, também faz parte das ações da Célula.
Quando as ações começarão e quem pode participar?
Já estão em construção diariamente e temos sempre abertura com André Hidalgo para discutir questões internas da Casa de Criadores. A ideia é ampliarmos isso para outros espaços. O racismo estrutural não é um problema de pessoas negras e indígenas e nem responsabilidade das mesmas. Então, acreditamos que a luta antirracista é uma luta de todes, e assim pessoas realmente engajadas podem contribuir para a célula crescer dentro de suas ações, assim como podem usufruir dos conhecimentos que serão criados a partir dela.
Quais ações vocês têm em mente para atingir os objetivos da Célula?
Desenvolver uma rede de apoio e suporte a profissionais pretxs. Escalada através de redes sociais, pensamos em ações que impactem direto na emancipação destas pessoas através da criação de pontes que gerem acesso de diferentes formas: acesso à matéria-prima, locais de visibilidade, recurso financeiro, parcerias benéficas, além de fomentar a discussão acerca da presença destes profissionais no mundo da moda, impacto do racismo e outras mazelas sociais. Queremos gerar acesso e conexões, sejam através de redes sociais ou ações diretas nas passarelas e em suas produções.
Onde gostariam que a Célula chegasse?
Queremos que a Célula se solidifique como uma plataforma de inclusão e desenvolvimento de profissionais pretxs em toda a cadeia da moda. Que consigamos criar uma rede, desenvolver projetos e ações que permitam uma entrada efetiva desses profissionais nessa indústria que sempre se beneficiou de nossa imagem, mas que tem tanta dificuldade em reconhecer nosso trabalho. Queremos e precisamos trazer reconhecimento, visibilidade e principalmente conseguir gerar trabalho.