Revista Raça Brasil

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Mulheres e cárcere: sonhos não podem ser acorrentados

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Juristas Negras

O Instituto Juristas Negras é uma coletiva de mulheres negras integrantes do Sistema de Justiça, que buscam ampliar os horizontes sobre Direito e Justiça, a partir da afirmação da negritude, da história, cultura e contribuições do povo negro para a formação do Brasil, numa perspectiva decolonial.

Por Monique Damas

 

Na condição de jurista negra, há alguns anos, venho refletindo sobre o papel social do sistema prisional e sobre como – diante de sua injustiça seletiva  – é possível manter viva a chama da liberdade. Após a vida, a liberdade é o bem mais precioso que um ser humano pode ter. Quando ela nos é retirada, acredito que entramos em um estado de suspensão, uma espécie de morte social, onde tudo gira em torno da busca por recuperá-la. Sim, a prisão é uma interrupção das nossas vidas.

Em 2019, com a chegada da pandemia da covid-19, toda a sociedade teve uma amostra — ainda que ínfima — do que significa viver em confinamento. Faltou contato social, afeto, oxigênio… e, principalmente, liberdade. Nas comunidades e grupos mais vulnerabilizados faltou muito mais: alimentos, saneamento, saúde, vacina… 

Não quero comparar realidades, mas é certo que os impactos psicológicos da reclusão deixaram  marcas profundas em todos nós. Foi uma experiência que nos obrigou a encarar a ausência de liberdade como algo real e devastador, ainda que em diferentes graus. As pessoas em situação de cárcere sofreram dupla privação. Já privadas da liberdade, ainda enfrentaram a proibição de visitas de familiares, que ainda permaneceram sem informações sobre o estado de saúde das/os custodiadas/os. 

Em 2022, por meio do projeto social “Mulheres & Cárcere: a liberdade é uma luta constante”, do Instituto Juristas Negras, adentrei pela primeira vez o Conjunto Penal Feminino de Salvador. A sensação foi de incerteza e expectativa.. Afinal, quem seriam aquelas mulheres? Aceitariam se abrir para um projeto liderado por pessoas desconhecidas? 

Foi com essas questões em mente que idealizamos a dinâmica do nosso primeiro encontro com as assistidas. Elas seriam as entrevistadoras. Estávamos lá – duas advogadas, uma psicóloga e uma assistente social – para ouvi-las e respondê-las. As perguntas foram diretas e comoventes: “Você é preta, né? Você já sofreu racismo? O que é racismo religioso? Por que vocês se importam com a gente? O que ganham vindo aqui? Vocês também vão esquecer a gente, como todo mundo?

Respondemos uma a uma, com sinceridade. E foi ali, naquele exercício de troca e escuta, que criamos laços reais. O que não precisou ser dito, mas foi sentido por todas; somos espelhos umas das outras. Nós, juristas negras, nos víamos nelas. Em cada história, a dor ancestral que ainda aprisiona a dignidade do nosso povo. Elas, as assistidas, se enxergavam em nós, como frutos dos sonhos de nossas ancestrais.

O objetivo do projeto é prestar atendimento jurídico, social e psicológico com uma equipe multidisciplinar. Mais do que isso: buscamos identificar, nos processos judiciais dessas mulheres, possibilidades reais de desencarceramento. Queremos devolvê-las o direito à liberdade – aquele sonho que parecia inalcançável para muitas delas.

Contudo, ao pisar naquele espaço, fomos surpreendidas por uma realidade ainda mais dura: sonhos interrompidos, vidas paralisadas pela ausência de oportunidades e de acesso a direitos básicos. Em muitos momentos, pensei que poderia estar no lugar delas. As histórias que ouvimos não cabem em relatórios de pesquisa, muito menos em processos judiciais nos quais a presunção de culpa impera contra pessoas negras e oriundas de comunidades. 

O caso de Gabriela (nome fictício) – uma jovem que me tocou profundamente – representa uma das inúmeras histórias de vidas interrompidas pelo cárcere. Técnica em patologia clínica, com apenas 27 anos, ela trabalhava em um hospital estadual. Tinha família, carteira assinada e residência fixa, até ser presa, durante o expediente, acusada de tráfico de drogas. A acusação se baseava no fato de Gabriela ter atendido ao pedido de seu companheiro, preso por tráfico de drogas, para levar um rapaz até um bar, para encontrar um amigo do casal, já que aquele não conhecia a localidade. A ligação estava sendo monitorada e foi utilizada como prova para processar Gabriela por tráfico de drogas e associação para o tráfico. Sem assistência jurídica adequada, foi condenada a 18 anos de reclusão, em regime fechado, apesar de ser ré primária e sem antecedentes criminais.

Eu a conheci durante o Natal, quando levei às assistidas do projeto a proposta de  realizarmos um “amigo oculto” diferente. Propus que sorteassem os nomes e trocassem palavras de carinho e gestos afetuosos. Eu sabia que afeto é algo raro em ambientes de privação de liberdade.

Ninguém quis que Gabriela participasse: diziam que ela era nova no presídio, pois estava ali há apenas duas semanas. Quando olhei para ela, vi sua cabeça baixa, o olhar perdido. Então, eu me ofereci para ser sua amiga oculta.

Disse-lhe que não via o uniforme laranja, nem a cor de sua pele ou seu corpo negro. Olhando para os seus olhos, continuei: “quando olho para você, consigo enxergar a mulher brilhante que você é. A prisão não te define. Você é amada e eu não estou aqui para te julgar, mas para te acolher”. Quando a abracei, Gabriela chorou intensamente, desabando em meus braços.

Mais tarde, ela pediu para conversar comigo. Contou que estava em depressão e havia cogitado tirar a própria vida. Explicou-me o motivo de sua prisão: Gabriela foi encarcerada por amar.

Histórias como a dela são comuns. Muitas mulheres são presas por vínculos afetivos com homens em situação de cárcere. São mães, esposas, namoradas, irmãs. 

Diferentemente dos presídios masculinos, nos femininos, não há fila de visitas. Para mulheres, sobretudo negras, o julgamento da sociedade e da própria família é como a última “pá de cal”1.  E, quando a liberdade se esvai, e com ela o amor, onde fica a esperança?

A sociedade ainda nos aprisiona com correntes simbólicas. Mas precisamos seguir, de mãos dadas, rumo à liberdade de todas nós.

Percebi, então, que o papel do Instituto Juristas Negras vai muito além do apoio técnico. Precisamos garantir que essas mulheres continuem sonhando. Nossa missão é plantar o sonho da liberdade. Sonhá-lo juntas. Porque eu, mulher preta, também estou buscando a minha (nossa) liberdade, pois, como dizia Audre Lorde: “não serei livre, enquanto outra mulher for prisioneira, ainda que as correntes dela sejam diferentes das minhas”.

Meu pai costumava me dizer: “Nunca deixe de sonhar, porque o sonho é o combustível da vida.” Agora entendi que sonhos não podem ser acorrentados.

  1. Significa finalizado, acabado, encerrado. Refere-se ao costume de, ao fim de um sepultamento, despejar cal na cova para acelerar a decomposição e evitar contaminações.

Monique Damas é mulher negra e advogada criminalista, com especialização em Advocacia Criminal pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). É Diretora Executiva do Instituto Juristas Negras e gestora do projeto Mulheres & Cárcere: A liberdade é uma luta constante. Atua como conselheira pelo IJN no Conselho Nacional dos Direitos da Mulher e integra o Fórum Permanente de Violência de Gênero. É mestranda em Relações Étnico-Raciais pela Universidade Federal da Bahia (UFBA).

[Os textos assinados não refletem, necessariamente, a opinião da Revista Raça].

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