Por: Michele Britto
O amor é capaz de nos libertar! Ele desconhece correntes! Mas, na realidade do cárcere, o amor se manifesta de maneira ainda mais potente, como um verdadeiro ato político de resistência.
No dia 12 de maio de 2025, véspera da data simbólica em que o movimento negro denuncia a farsa da abolição da escravidão, o Museu Nacional da Cultura Afro-Brasileira (MUNCAB), localizado em Salvador — a cidade mais negra fora da África —, foi palco de um casamento coletivo LGBT+, promovido pelo Projeto Mulheres & Cárcere do Instituto Juristas Negras (IJN).
Celebramos o amor resiliente de cinco casais formados por mulheres negras lésbicas, egressas do sistema prisional e mulheres em privação de liberdade. Despretensiosamente, elas nos ensinaram que o amor sobrevive à dor e à solidão impostas pelo encarceramento.
Mesmo no sistema prisional, o julgamento moralista, sexista e patriarcal da sociedade se impõe de maneira cruel às mulheres. A construção social do estereótipo da “mulher criminosa” acarreta a ruptura ou esvaziamento de seus vínculos familiares e afetivos.
Segundo dados do SISDEPEN, 26,8% das mulheres presas no Brasil não recebem visitas. Uma pesquisa do IPEA, de 2025, demonstra que, embora mulheres negras representem 69,9% dos serviços relacionados a cuidados no Brasil, paradoxalmente, enfrentam a solidão quando mais necessitam desses mesmos cuidados que oferecem cotidianamente.
Quem ampara aquelas que dedicam suas vidas a cuidar dos outros? Como construir laços afetivos após o abandono?
O amor tem esse poder! Através dele, testemunhamos correntes se converterem em elos afetivos, mesmo em meio ao cárcere.
Em uma cerimônia inter-religiosa conduzida pela Iyalorixá Jaciara Ribeiro, pela Pastora Silvana Alves e por uma juíza de paz, nossas assistidas celebraram o amor, o apoio mútuo e a ressignificação de suas trajetórias, florescendo onde o sistema esperava que sucumbissem.

O primeiro casamento LGBT+ organizado pelo Instituto Juristas Negras e pelo Museu Nacional da Cultura Afro-Brasileira teve como propósito central humanizar a experiência das mulheres acolhidas pelo projeto, rompendo com a lógica perversa de que, para quem está encarcerada, qualquer coisa basta. Pelo contrário: os detalhes da cerimônia e da celebração foram cuidadosamente pensados, revelando o afeto, o cuidado e o compromisso envolvidos em cada escolha, em cada gesto.
Compreendemos, desde o início, que aquele momento precisava ser inesquecível! E assim foi para todos e todas que estiveram presentes, neste ato concreto de amor.
Como argumenta bell hooks, o amor transcende a esfera pessoal e se torna um ato político e revolucionário capaz de transformar relações de poder e promover uma sociedade mais justa e igualitária.
Mais uma vez, o projeto Mulheres & Cárcere inova e reafirma: somos seres humanos e precisamos ser olhadas com justiça, empatia e equidade; não com o julgamento que já coube ao sistema de justiça e, infelizmente, à própria sociedade. O que reivindicamos é o direito à dignidade e o amor é parte essencial disso.

Mulheres negras egressas do sistema prisional se amando é revolucionário! Que os laços estabelecidos no dia 12 de maio possam ser força motriz para transgredir a (des)ordem posta que historicamente sempre quis nos aniquilar.
“A Justiça é uma mulher negra e ela não anda só!” Nos entrelaços da vida, as mulheres negras seguem juntas, se movimentando e balançando as estruturas A revolução será feminina e negra e virá do amor entre nós!
Michele Britto é advogada popular, atua com povos indígenas da Bahia e é integrante do Instituto Juristas Negras.
[Os textos assinados não refletem, necessariamente, a opinião da Revista Raça].