Mulheres negras como alvo na equiparação do aborto como crime

Colunista: Rachel Quintiliano

O assunto mais quente da semana é, sem dúvida, o Projeto de Lei 1904/2024, do deputado Sóstenes Cavalcante (PL-RJ), que equipara o aborto a homicídio. A Câmara dos Deputados aprovou o caráter de urgência da proposta, o que significa que pode entrar no plenário para votação a qualquer momento, sem que passe por discussão em comissões.


O projeto vem na esteira de outro projeto de lei em discussão desde 2007 (Lei 478/2007), o Estatuto do Nascituro, que propõe a instituição do direito à vida desde a concepção.


Isso demonstra que, há algum tempo, propostas que vão na contramão dos direitos humanos insistem em aparecer no Congresso, curiosamente em anos eleitorais, como este de 2024. E, mais alarmante que isso, a proposta, que já vem sendo amplamente questionada pela sociedade, pode discriminar duplamente mulheres negras, indígenas, pobres e em situação de vulnerabilidade, que historicamente enfrentam mais obstáculos no acesso às políticas públicas e também à justiça.


Segundo o último relatório global produzido pelo Fundo de População das Nações Unidas, divulgado neste ano, Situação da População Mundial, é preciso chamar a atenção para as desigualdades em saúde e no acesso e garantia dos direitos sexuais e reprodutivos.

O documento indica que pessoas que menstruam e podem engravidar estão sendo deixadas para trás devido à sua identidade e/ou local de nascimento. O racismo, o sexismo, o machismo e outras formas de discriminação estão se colocando como elevados obstáculos para a garantia desse direito.


Por isso, é fundamental que as mulheres, que representam a maior parcela do eleitorado brasileiro, se posicionem e cobrem seus representantes neste momento decisivo que pode levar ao retrocesso na agenda de direitos.


Tanto o Projeto de Lei 1904/2024 quanto o 478/2007 buscam alterar a legislação brasileira, que hoje autoriza a realização de aborto em casos de gravidez decorrente de estupro, que tenha risco à vida da pessoa gestante ou em casos de fetos com anencefalia. Com a proposta do deputado Sóstenes Cavalcante, essas previsões mudariam e, em qualquer situação, o aborto seria considerado homicídio.


O projeto vem sendo amplamente criticado pela sociedade. Na manhã do dia 14/06, a enquete da Câmara já indicava que 86% dos respondentes discordam totalmente do projeto. Mais de 123 mil comentários contra também já estavam disponíveis na página da enquete.


Essas propostas vão na contramão dos Direitos Humanos, porque os direitos sexuais e reprodutivos fazem parte desta agenda e o Brasil é um dos países signatários. Inclusive, quando essa agenda ganhou os contornos que tem hoje, o Brasil esteve em Cairo em 1994 e contribuiu significativamente para o relatório final da Conferência das Nações Unidas sobre População e Desenvolvimento.
O relatório e o plano de ação da conferência informam que é direito humano decidir se, quando e com quem ter filhos. O plano também insta os países membros das Nações Unidas, inclusive o Brasil, a garantir esse direito, desenvolvendo políticas públicas de planejamento da vida reprodutiva (planejamento familiar), ofertando informação e insumos para que as pessoas possam planejar ou evitar gravidezes.


Rachel Quintiliano é jornalista com experiência em gestão, relações públicas e promoção da equidade de gênero e raça. Trabalhou na imprensa, governo, sociedade civil, iniciativa privada e organismos internacionais. Está à frente do canal “Negra Percepção” no YouTube e é autora do livro ‘Negra Percepção: sobre mim e nós na pandemia’.

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