Revista Raça Brasil

Compartilhe

Foto: Acervo

Mulher negra no sistema de justiça é exceção, mas trajetórias inspiram mudanças

Picture of Rachel Quintiliano

Rachel Quintiliano

Editora do Portal Raça. Jornalista e escritora com quase 30 anos de experiência, tanto na comunicação corporativa quanto da imprensa, especialmente imprensa negra. Autora do livro ‘Negra percepção: sobre mim e nós na pandemia’. É responsável por planejar os conteúdos do portal, assegurando a linha editorial e estratégia narrativa do grupo RAÇA.

Mesmo representando 28% da população brasileira, mulheres negras ocupam apenas 2% da magistratura. Histórias como as de Monique Damas e Lívia Sant’Anna revelam resistência, enfrentamento e urgência de mudanças estruturais nos sistemas de justiça.

A presença de mulheres negras nos sistemas de justiça continua marcada por exclusões históricas e barreiras estruturais. Embora as pessoas negras (pretas e pardas) representem a maioria da população brasileira, a magistratura é composta majoritariamente por homens brancos — 61% dos magistrados se declaram brancos e 64% são homens, segundo o Censo do Poder Judiciário de 2023, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Mulheres negras representam apenas 2% da magistratura, número que escancara a desigualdade racial e de gênero nas instituições responsáveis por garantir direitos.

“Ser uma mulher negra no sistema de justiça é romper com o que nos foi negado”

A promotora de Justiça Lívia Sant’Anna, uma das mulheres negras a ocupar cargo de liderança no Ministério Público, não mede palavras: “Costumo dizer que sou uma exceção que confirma a regra de exclusão de mulheres negras no sistema de justiça. Isso nos impõe uma solidão institucional avassaladora, muitas vezes adoecedora.” Com mais de 20 anos de atuação, Lívia testemunhou avanços tímidos, mas reforça que a ausência de mulheres negras nas cortes superiores — como o Supremo Tribunal Federal (STF) e o Superior Tribunal de Justiça (STJ) — é um reflexo direto do racismo patriarcal estrutural.

Ela destaca a importância da presença de mulheres negras nos espaços de decisão: “Ter mulheres negras no sistema de justiça é fundamental para promover representatividade, pluralidade e justiça social”. 

Para Monique Damas, advogada criminalista e diretora do Instituto Juristas Negras, o racismo atravessa todas as etapas da trajetória profissional. “Enfrentamos preconceito desde o acesso à educação até o exercício da profissão. Mesmo dentro do Judiciário, lidamos com o silenciamento, o isolamento e a cobrança constante de excelência, como se estivéssemos sempre sendo testadas.”

Ela relembra um episódio marcante do início da carreira: “Uma cliente com quem eu falava por telefone semanalmente foi ao escritório. Ao me ver, achou que eu fosse a copeira e me criticou por não saber servir café. Só depois que meu estagiário me chamou de ‘doutora’ é que ela se deu conta de que eu era a advogada dela. Me pediu desculpas, mas justificou dizendo que ‘não era comum ver uma mulher negra advogada’. Mesmo vestida de forma formal, fui invisibilizada. Isso é racismo.”

Interseccionalidade, meritocracia e o mito da neutralidade

Ambas as juristas ressaltam como o racismo se entrelaça ao sexismo para impedir o avanço de mulheres negras no sistema de justiça. “Como afirma Sueli Carneiro, ser uma mulher negra numa sociedade racista e sexista é viver uma asfixia social constante”, afirma Lívia. 

Ela também critica a noção de meritocracia, amplamente utilizada para justificar a ausência de pessoas negras nas posições de poder. “Não há grupo mais identitário do Brasil do que homens brancos, que sempre mantêm secularmente no topo da pirâmide social, sob o pretexto da meritocracia, quando na verdade, seguem colhendo os privilégios frutos das opressões históricas de outros grupos sociais”.

Por uma justiça de olhos abertos

A crítica à ideia de neutralidade no sistema de justiça também é central nas falas de ambas. “Até mesmo a nossa representação imagética da justiça está associada à mitologia grega: a Themis, uma figura mitológica representada como uma mulher branca de olhos vendados. Tenho afirmado que precisamos de uma Justiça de olhos abertos e atentos às desigualdades e injustiças que ela precisa corrigir. Uma Justiça de olhos vendados não é capaz senão de manter o status quo de privilégios da branquitude, de um lado, e de reprodução de opressões de grupos já historicamente vulnerabilizados, de outro”.

Monique Damas acrescenta que “nós trazemos outras vivências, outros olhares sobre as desigualdades, o que enriquece a interpretação do direito e a aplicação da justiça. Não se trata apenas de representatividade simbólica, mas de transformar as estruturas de poder para que incluam efetivamente a diversidade da sociedade brasileir”.

O futuro que se quer construir

Embora os avanços ainda sejam lentos, Monique acredita que o cenário começa a se transformar, em parte graças à mobilização da sociedade civil, às cotas raciais e ao fortalecimento de redes de apoio entre juristas negras. “A nossa presença já é um ato político. Nós abrimos caminhos para que outras venham depois. E não estamos sozinhas.”

 

Publicidade

Open chat
Preciso de Ajuda
Olá 👋
Podemos te ajudar?