Mulheres negras valem menos, até na hora do parto?

A frase ecoou na minha cabeça quando ouvi em uma reunião de um coletivo de mulheres negras, no início do ano 2000, quando tive acesso à agenda global de proteção de direitos e por saúde sexual e reprodutiva. O assunto é tão sério que está entre os indicadores do Objetivos do Desenvolvimento Sustentável das Nações Unidas e serve para medir o desenvolvimento dos países.

Naquele momento, o meu entendimento sobre o assunto era tão raso que ficava buscando justificativa e informações biológicas que pudessem explicar os motivos que levam as mulheres negras a morrer mais, do que as mulheres brancas, durante a gravidez, parto e puerpério. Fenômeno observado no Brasil, mas também em outras regiões do mundo.

Inocente, achei que pudesse ter alguma condição orgânica específica. Infelizmente descobri que as mortes maternas, aquelas que acontecem na gravidez, parto e puerpério, na verdade, são na maioria das vezes evitáveis e que o serviço de má qualidade contaminado de preconceito, discriminação e racismo, coloca as mulheres negras para o topo de uma dolorosa estatística.

Lamentavelmente observamos, por meio dos dados, a sofisticação e o alcance do racismo institucional, que permite que as mulheres negras recebam um atendimento pior; que fiquem mais expostas; realizem menos consultas de pré-natal; menos acompanhamento médico; busquem por mais maternidades na hora do parto, configurando uma jornada exaustiva e, por vezes, sem sucesso e, até mesmo, obtenham menos anestesia na hora de dar à luz.

Segundo o Painel de Monitoramento da Mortalidade Materna, do Ministério da saúde, foram registrados, no ano passado (2022), 66.862 óbitos maternos em mulheres com idade entre 10 e 49 anos. Dessas, 26.822 eram brancas e 38.232 negras.

O caso de Alyne da Silva Pimentel Teixeira, que chegou às cortes internacionais, é uma forte evidência dessa situação. Conforme o site (https://alyne.org.br/) mantido pela ong Criola, Alyne, “[…] residente na Baixada Fluminense, casada e mãe de uma menina. Estava grávida de 6 meses no dia 11/11/2002 quando se sentiu mal e buscou tratamento na Casa de Saúde Nossa Senhora da Glória em Belford Roxo. Receitaram um remédio e a mandaram de volta para casa. Retornou dois dias depois, em pior estado e com o bebê morto dentro dela. Depois de mais de 7 horas de espera, induziram o parto e retiraram o feto morto. Alyne seguiu passando mal e precisou esperar até o dia seguinte para iniciar o procedimento de remoção de partes do feto que ainda permaneciam no seu útero. Ela seguiu piorando e a sua família foi proibida de visitá-la, mas a Casa de Saúde dizia que ela estava bem”. A jovem mulher negra não resistiu e morreu.


Apesar do assunto não ser novo e de o Brasil já ter admitido publicamente a existência do racismo no serviço de saúde e até mesmo ter se comprometido em dar encaminhamento às reivindicações do movimento social negro, com a publicação, em maio de 2009, da Política Nacional de Saúde Integral da População Negra, muito ainda precisa ser feito e discutido e o espaço desta coluna, não poderia ser furtar da urgente discussão, no mês em que celebramos o Dia das Mães.

Os números e evidências, seguem mostrando que as mulheres negras são as mais impactadas quando falamos do assunto, saúde sexual, reprodutiva e direitos. Para além do atendimento, muitas vezes inadequado, existe ainda a sombra persistente do assédio.

Recebemos, com perplexidade, no ano passado, um conjunto de notícias sobre ocorrências de violência sexual (estupro de vulnerável) durante o parto em um hospital do público na cidade do Rio de Janeiro, localizado em um bairro de classe média baixa, que possivelmente atende em maior quantidade, mulheres negras. A cor das vítimas não foi informada pelo noticiário, mas dado o tipo de serviço e a localização do hospital, posso suspeitar que as vítimas eram mulheres negras.

Portanto, fica a reflexão necessária sobre se estamos valorizando e reconhecendo a vida das mulheres negras, sejam elas mães ou não.

Rachel Quintiliano é jornalista, pós-graduada em comunicação e saúde, defensora dos direitos humanos e promotora da equidade de gênero e raça. Escreve sobre identidade, autoestima, livros, filmes e séries.

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Jornalista com experiência em gestão, relações públicas e promoção da equidade de gênero e raça. Trabalhou na imprensa, governo, sociedade civil, iniciativa privada e organismos internacionais. Está a frente do canal "Negra Percepção" no YouTube e é autora do livro 'Negra percepção: sobre mim e nós na pandemia'.

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