NINA SILVA, a mentora do Black Money

Por : Maurício Pestana

Executiva de TI destaca a necessidade de construção de uma estrutura de poder com mais mandatos coletivos e candidatos fortes para uma bancada preta que represente os direitos dos pretos sem manobras.


Muito tem se falado em Black Money. E graças a Nina Silva isso é possível. Executiva de Tecnologia da Informação (TI) há quase duas décadas, ela figura na lista das 100 pessoas afrodescendentes com menos de 40 anos mais influentes do mundo. Sócia fundadora do Movimento Black Money, sócia fundadora da fintech D’Black Bank, ela integra a equipe de Gestão de Projetos da empresa norte-americana ThoughtWorks. A empreendedora também é mentora, escritora e palestrante em temas como Gestão de Negócios, Tecnologia, Liderança e Diversidade. 

O que é, exatamente, o Black Money?

É um método de estratégia intra comunidade negra de circulação de capital por mais tempo entre mãos negras, para maior autonomia e emancipação da população negra no mundo. Segue princípios do afrocentrismo e do panafricanismo de Marcus Garvey, onde a alavancagem de empreendimentos e profissionais negros está diretamente conectada à intencionalidade da pessoa negra em consumir, gerar e gerir negócios para construção de uma cadeia de suprimentos enegrecida, culminando em maior e melhor empregabilidade, representatividade, acessibilidade e visibilidade para nossas redes. Em 2017, fundei com meu sócio Alan Soares o Movimento Black Money, um hub de inovação que visa trazer autonomia para a população negra a partir do mindset tecnológico, finanças e inserção do olhar de startup focado em empreendedorismo. Na prática, consiste em sermos nossos próprios investidores, uma vez que o negro tem o crédito três vezes mais negado nas instituições financeiras.

Quais os desafios e diferenças do Black Money norte americano extremamente racializado e o Black Money miscigenado brasileiro?

Black Money em si não possui fronteiras nacionais. É pautado no nacionalismo negro, no qual uma pessoa negra precisa ter a mesma intencionalidade de fortalecimento de seus iguais independente do lugar do mundo em que esteja ou tenha nascido. Principalmente quando falamos de Brasil e Estados Unidos, cujas colonizações sequestraram e marginalizaram a população afrodescendente sem qualquer reparação de dívida histórica. Nos EUA a implementação de políticas públicas e ações afirmativas advêm das décadas de 50/60, o que os coloca à frente para uma maior conscientização racial. No Brasil, o mito da democracia racial calou a discussão sobre desigualdades raciais durante anos. Os movimentos negro, principalmente o MNU ficaram à margem, não conseguindo pulverizar as ferramentas e estratégias de proteção e guerrilha contra o racismo estrutural, mas isso está mudando. Com a transformação digital é possível diminuir barreiras geográficas e culturais. Circulamos conteúdos com maior velocidade e nos conectamos cada vez mais com redes que se identificam e complementam. Atualmente o jovem negro daqui as conecta com grupos de jovens negros da Nigéria e troca informações, além de construírem juntos possibilidades de transgredir as variadas situações.

O empoderamento se fez historicamente pelo peso da caneta exercido política e economicamente. Como mantê-lo se não controlamos esses processos?

Quando falamos de circular capital, provocamos também o compartilhamento de saberes (capital intelectual) e networking e acesso (capital social). Não apenas o capital financeiro movimenta poder e influência, mas nossas práticas e aprendizados que sustentam e mantêm a população negra resistindo. Devemos também transgredir, traçar estratégias de colocar mais políticos negros nos três poderes de maneira estratégica. É crucial para potencializarmos nossa influência para construção dos nossos próprios espaços. No Movimento Black Money temos o objetivo de que, pelo menos 30% do que for consumido pelos afrodescendentes, se mantenha na comunidade. Não são apenas pessoas negras que podem praticar o Black Money. Todos os aliados querem ajudar a melhorar as discrepâncias raciais. As empresas podem ter fornecedores negros, contratar mais negros e, assim contribuir para que a cadeia de suprimentos fique cada vez mais enegrecida. Um sistema empresarial com maior diversidade étnico-racial é mais ágil e transformador e ainda possui sua lucratividade aumentada em 33% – segundo estudos da McKinsey. A ideia é que possamos ser nosso próprio agente de transformação e que não precisemos pedir por inclusão e igualdade. Isso demoraria muito para corrigir a situação atual de desigualdade social no país.

As novas tecnologias ainda são extremamente excludentes. Poucos têm acesso ou dominam profundamente. Como incluir diante de uma educação precária, como acontece com boa parte da população predominantemente preta e pobre?

Infelizmente não conseguimos contar com uma educação pública de qualidade. Quando falamos das universidades públicas temos um déficit da ausência da população negra por anos de exclusão que as cotas raciais ainda não reverteram. Mesmo tendo um cenário muito melhor que há 15 anos, ainda precisamos de extensão e melhorias no sistema. Na contramão, movimentos da sociedade civil vêm dialogando com a educação inovadora para inserção de população à margem das esferas de poder corporativas, de maneira a trazer ferramentas do mundo digital e ao mundo das startups como possibilidades para melhores oportunidades no mercado de trabalho. As Escolas Digitais com cursos de imersão e bootcamps trazem ensino de qualidade em menor tempo, com cursos que prometem formar pessoas desenvolvedoras em um semestre. O que fazemos é estar junto a estas instituições com parcerias para disponibilidade dessas oportunidades de maneira gratuita para a comunidade negra. No Movimento Black Money hackeamos o sistema formando bolsistas que depois dão aulas em nossos cursos próprios para escalar o número de pessoas negras atendidas. O intuito é termos nossas próprias instituições também educacionais, autonomia que perpassa por acesso e gerenciamento de saberes.

“Com a transformação digital é possível diminuir barreiras geográficas e culturais”

Você foi apontada pela Forbes como uma das 20 mulheres mais poderosas do Brasil. Como vê esse poder na atual conjuntura política, na qual somos as maiores vítimas dos assassinatos, do desemprego e das desigualdades? 

Espaços devem ser ocupados para criarmos diferentes perspectivas para as pessoas. Representatividade importa, mas sem ter acesso a influenciar as estruturas, não há representatividade de verdade. Uma menina do Jardim Catarina (área carente da Baixada Fluminense) ser premiada e estar em mídias que nunca antes imaginaria estar, não resolve. O que pode ser feito é usar desses canais para fortalecer nosso trabalho do dia a dia, dar visibilidade ao trabalho de outras pessoas pretas e ser estímulo para os que estão por vir. Há um perigo eminente de falar de pan-africanismo e Plano Preto de Poder em um governo explicitamente contra qualquer proposta de inclusão e diálogo com grupos minoritários. Não podemos retroceder. Pagaremos qualquer preço pela continuidade. Precisamos construir nossa estrutura de poder com mais mandatos coletivos e candidatos fortes para uma bancada preta que represente nossos direitos sem manobras de esquerda ou direita que não resolvem o cerne do problema e que nunca colocaram o protagonismo preto na agenda principal de governo. Negros estão por sua própria conta desde que foram sequestrados e aniquilados em território africano e é por isso que a resolução precisa perpassar construção coletiva nas esferas política, econômica, educacional e sociocultural.

A inteligência artificial já é uma realidade apontada como um estrago no mercado de trabalho. Como acha que isso vai impactar em negros e negras?

Mecanismos como sistemas neurais de reconhecimento facial muitas vezes excluem e reforçam os preconceitos estruturais da sociedade. Algoritmos podem reproduzir misoginia, racismo e homofobia. São construídos para reproduzir e otimizar comportamentos humanos, e a máquina só aprende em cima de um padrão estabelecido. É cada vez mais urgente a revolução tecnológica ser feita a partir da criatividade, inovação e responsabilidade humana para que erros históricos não sejam reproduzidos. Atualmente as redes sociais dispõem de aplicativos de envelhecimento que trazem o perigo da mutação de diferentes rostos, origens a um só padrão. São aplicativos pautados em um padrão branco. Rugas em padrões de rostos sem melanina trazem uma falsa realidade a partir do padrão caucasiano hegemônico. O perigo de reforçarmos o entendimento de mundo a partir de uma única estética e que tudo diferente  disto é errado, feio ou anormal. Tecnologias que deveriam ser usadas para ressaltar as diferenças positivamente muitas vezes usadas para trazer um único ponto de vista e de aceitação. Além disso, no mercado de trabalho a Indústria 4.0 dá continuidade à substituição de cargos operacionais (em sua maioria ocupados por pessoas negras) por robôs e sistemas operacionais automatizados.

Novas profissões estão surgindo como possibilidade, mas quem está se preparando para essa nova maneira de olhar carreira e negócios? Urge a inserção da população negra às novas formas de se instrumentalizar para o mercado de trabalho através da tecnologia e a inserção de seus empreendimentos aos níveis de inovação para real competição. Para isso temos que rever e reavaliar nossa educação básica, financeira e empreendedora. E nos fortalecermos enquanto redes para ditarmos a maneira como a Inteligência Artificial e outras tecnologias afetarão o povo preto.

“Representatividade importa, mas sem influenciar as estruturas, não há representatividade de verdade.”

Qual recado você daria às Ninas pretas e pobres das comunidades que ainda não ascenderam social e educacionalmente, como você?

Para as meninas negras e meninos negros: chegamos juntos até este momento, podemos mudar a realidade e construir nosso futuro. Não há interseccionalidade de gênero que determine o que uma pessoa preta passa todos os dias. Coloquem sempre a questão racial na frente. O jovem que mais é morto nesse país é preto e poderia ser meu tio. A maioria das mulheres trans que são mortas é negra e poderiam ser minhas irmãs. Toda e qualquer agenda que atinja a vida ou limite a capacidade de uma pessoa preta deve ter seu ponto de análise e de solução inicialmente pautado em raça e não é coincidência. Homens negros e mulheres negras estão no mesmo patamar de desumanização e falta de condições mínimas. Somos uma unidade, cruelmente atingidos e separados pelo racismo desde que fomos trazidos sequestrados para o Brasil. Crianças e jovens, antes de falarem sobre coach e mentores, já tínhamos nossos Griots. Nossa tradição da oralidade, de respeito e ensinamento entre trocas geracionais precisa ser resgatada. Não estamos conectados com os que já trilharam os caminhos que queremos percorrer. Precisamos resgatar o diálogo com os mais velhos e mais velhas. Pedir a bênção e aprender com os desafios que ainda vamos enfrentar. As famílias pretas foram separadas no período escravocrata e estão sendo separadas também agora. Nossos jovens não são estimulados a formar uma família preta. Não chamamos o homem negro para falar das questões da mulher negra e vice-versa. Espelhamos as relações de gênero entre homens e mulheres brancas e esquecemos que eles não possuem a questão racial para resolver, problema este implantado historicamente nas vidas negras a partir das mãos brancas. Então, Ninos e Ninas cuidem uns dos outros, porque não existe prosperidade e vida na comunidade negra sem a união e o trabalho de todos para o coletivo.

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