Nos bastidores e na tela nós estamos aqui
Apresentadoras, jornalistas, produtoras, diretoras. As mulheres negras ocupam espaço e criam oportunidades para ampliar sua presença no mercado audiovisual.
Fazendo um exercício de memória nós tivemos poucas mulheres negras trabalhando em frente às câmeras ou nos bastidores da televisão, do cinema, ou mesmo no rádio, quando esses meios de comunicação começaram e até a pouco tempo nossas referências ainda eram poucas. Glória Maria era uma das únicas referências de mulheres negras com destaque do telejornalismo nos anos 90, além de Zileide Silva, que trabalhou alguns anos como locutora no rádio até chegar à televisão, por exemplo.
Agora é possível celebrar que mulheres como Maju Coutinho, Aline Midlej, Joyce Ribeiro e Flávia Oliveira tenham encontrado seu lugar na bancada dos principais telejornais do Brasil e que sejam vistas como referências na profissão e pela população negra.
A apresentadora e jornalista Cris Guterres, conhece a satisfação de conquistar seu espaço na televisão, com seu próprio programa. No início deste ano estreou como apresentadora no Estação Livre na TV Cultura, programa dirigido pela cineasta Kelly Castilho. Assim como para muitas mulheres negras, Glória Maria também foi uma referência para Cris no jornalismo televisivo.
“Minha escolha pelo jornalismo, pela comunicação, vem desde a infância e eu ainda não cheguei a uma conclusão, mas acho que tem uma influência muito grande da Glória Maria”, conta.
A apresentadora explica que seu sonho sempre foi trabalhar na televisão: “A TV sempre foi uma busca para mim desde o início, quando eu comecei a fazer faculdade. Eu logo me envolvi nas atividades de TV, das aulas de rádio. Fiz um trabalho na faculdade vinculado à TV Osasco e eu era apresentadora junto com outro colega. No início eu já estava nessa busca por trabalhar na televisão e demorei um pouco, porque já me formei há alguns anos, mas existem vários fatores para essa demora acontecer, fatores raciais e também o fato de eu não ser uma mulher magra”.
“Eu me sinto muito orgulhosa de estar à frente de um programa na TV Cultura. É uma rede pública, reconhecida pela qualidade dos seus programas e que tem a intenção de informar, de educar, de promover o assunto de uma maneira que as pessoas possam refletir.”
No Estação Livre, Cris Guterres trabalha com uma equipe diversa e coloca em evidência temas importantes para sociedade, como meio ambiente, desenvolvimento social, arte e diversidade. “A gente quer promover discussões, a gente quer promover reflexões, a gente não quer estar ali só fazendo denúncias, denúncias, denúncias, não; a gente tá ali promovendo uma reflexão.
Essa é uma das prerrogativas do programa, sempre que vamos fazer os docs e as pautas, a gente tem essa preocupação de chamar pessoas que não estavam na televisão ou que estavam apenas nos programas sendo tipificados como criminosos, como violentos, queremos que elas estejam no Estação Livre pelo trabalho que elas realizam, pelo poder da fala delas, pelo poder das ações delas dentro das comunidades em que elas vivem”.
No cinema, no streaming e na televisão, a roteirista, escritora e diretora Luh Maza também está construindo seu legado, como a primeira autora e diretora trans convidada pelo Theatro Municipal de São Paulo, em 2019. Luh levou ao palco dez atrizes trans para a apresentação da peça Transtopia, entre elas Alice Marcone, Alina Dörzbacher, Aretha Sadick, Ave Terrena, Daniela Funez, Fernanda Kawani, Leona Jhovs, Leonarda Glück, Márcia Dailyn, Onika Soares e a participação da Assucena Assucena (que participou da obra e ainda fez show com sua banda As Baías, ao lado de Raquel Virgínia).
A pesquisa “A cara do cinema nacional: o perfil de gênero e cor dos atores, diretores e roteiristas dos filmes brasileiros” analisou filmes brasileiros de maior bilheteria lançados de 2002 a 2012 e constatou que não existiram produções dirigidas ou roteirizadas por mulheres negras e mulheres trans nesse período, entre os filmes de maior bilheteria. Analisando o mercado audiovisual no Brasil a diretora reconhece as mudanças e pontua: “A falta de acesso ao mercado cinematográfico, principalmente às grandes produtoras, afastou mulheres pretas e trans da direção e do roteiro dos grandes sucessos comerciais.
Neste recorte de tempo, então, nossa ausência em salas de roteiro e sets era alarmante e, por vezes, absoluta. De 2012 para cá muito mudou e hoje conheço várias mulheres pretas e trans que têm produzido uma verdadeira primavera cinematográfica. Numa análise em retrospecto de 2019 a 2021 podemos pensar no impacto social, cultural e artistico que as obras de mulheres pretas tiveram. Precisamos observar que ao longo do tempo o sucesso comercial e a qualidade artística muitas vezes são opostos, sobretudo o cinema de conteúdo político ou social, que encontra sucesso de crítica e premiação, mas não necessariamente de bilheteria.
Por isso acho importante que as grandes produtoras coloquem mulheres pretas e/ou trans à frente de grandes projetos comerciais também. Adoramos fazer cinema de arte ou de autora, como dizem, mas nós também queremos dirigir a comédia do ano”.
“Ser a primeira a entrar num espaço só faz sentido se eu puder abrir a porta para muitas mais. A representatividade só é real se for coletiva. Gosto da ideia de que meu reconhecimento possa contribuir para inspirar e potencializar outras mulheres pretas e trans.”
Luh Maza escreveu o curta-metragem musical “35”, que denuncia a baixa expectativa de vida da população trans no Brasil, que é de 35 anos. A produção tem trilha sonora da cantora Liniker. Além disso, Luh é a primeira roteirista trans negra da televisão brasileira, trabalhando para a série Sessão de Terapia, transmitida pelo Globo Play.
Sobre o futuro, Luh Maza diz estar ansiosa pelo lançamento de trabalhos e projetos de que ela participou antes e durante a pandemia: “Fui uma das roteiristas de uma série para a Globoplay, que seria gravada em 2020 quando a pandemia começou e no último ano participei do desenvolvimento de projetos para a Netflix e a HBO. Então, acredito que quando as produções forem normalizadas, forem retomadas, muitos projetos com minha participação serão lançados. Estou ansiosa! Ainda durante a pandemia também colaborei com os roteiros de dois documentários: “Corpo – Sua Autobiografia” (de Renata Carvalho) e “Gradient” (de Carolina Del Bue)”.