O cinismo político e as cotas eleitorais

Zulu Araújo

Quando a tese das ações afirmativas chegou ao Brasil, em 2002, após a III Conferência Mundial de Combate ao Racismo e Intolerância Correlata, foi um Deus nos acuda, principalmente ao se materializar nas cotas raciais para negros no ensino superior. Até mesmo setores da esquerda, que se diziam aliados incontestes da causa racial, ficaram contra, sob a alegação de que as cotas raciais seriam uma esmola e não resolveria o problema.

A campanha contra as ações afirmativas foi brutal, afirmavam que desejávamos dividir os pais, introduzir o ódio racial na sociedade brasileira e outras bobagens, mas ainda assim vencemos, graças à força da mobilização do movimento negro e à unanimidade do Supremo Tribunal Federal ao julgar pela sua constitucionalidade. Ficaram alguns recalcitrantes que vociferam até hoje, mas nada que chegue a preocupar, visto que as cotas estão aí ajudando a democratizar o acesso à educação no país, com mais de um milhão de jovens negros/as nas universidades.

Com a consolidação da democracia no país, essa demanda chegou aos partidos políticos por meio das mulheres e dos negros que, apesar de ser maioria absoluta da população, sempre foram sub-representados no Congresso Nacional. Ou seja, a casa que se diz do povo nunca representou esse povo nem na sua pluralidade étnica nem de gênero, muito menos de classe. É uma casa onde a absoluta maioria é formada por  homens, brancos e ricos.

Para alterar essa situação quase imutável o Congresso aprovou, por larga maioria, cotas para mulheres e negros nos partidos políticos, assim como financiamento especial, com o objetivo de estimular e apoiar candidaturas negras e femininas e futuros mandatos desses importantes segmentos da sociedade. Pois bem, a verdade nua e crua é que os partidos fraudaram essas cotas: inventaram candidaturas fantasmas de mulheres e maquiou com black face brancos conservadores, em particular no sul do país, para acessarem tanto as vagas quanto os recursos financeiros destinados a esses segmentos. Até mesmo um candidato a governador da Bahia, na eleição passada, um notório membro da elite branca local se declarou negão com esse objetivo.

Mas, o cinismo dos partidos políticos não ficou por aí. Agora, acabaram de aprovar na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados, uma PEC-09/23 (Projeto de Emenda Constitucional), que anistia esses partidos políticos em mais de 800 milhões de reais que foram literalmente desviados das suas finalidades e, acreditem, praticamente todos os partidos, inclusive os de esquerda estão apoiando essa anistia. As únicas exceções são o PSOL e o Novo.

A PEC diz com todas as letras que “não serão aplicadas sanções de qualquer natureza, inclusive de devolução de valores, multa ou suspensão do fundo partidário, aos partidos que não preencheram a cota mínima de gênero ou de raça ou que não destinaram os valores mínimos correspondentes a essas finalidades em eleições ocorridas antes da promulgação da emenda”. A indignação é geral, mas isso só não basta, é preciso que o movimento negro e os seus militantes pressionem seus partidos a não aderirem a essa iniquidade. É cinismo demais para a realidade que estamos vivendo. Assim, só recorrendo a Octávio Mangabeira, que foi governador da Bahia e nacionalizando um provérbio seu: “Pense num absurdo que o Brasil tem precedente”.

Toca a zabumba que a terra é nossa!

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