O combate ao racismo nas redes sociais

NIOUSHA ROSHANI : PÁGINAS PRETAS

Por: Maurício Pestana

[TEXTO DA EDIÇÃO 206/2019]

NASCIDA NO IRÃ, MAS COM A INFÂNCIA E ADOLESCÊNCIA DECORRIDAS NA COSTA DO MARFIM, NIOUSHA ROSHANI É REFERÊNCIA GLOBAL NAS QUESTÕES DE RAÇA E GÊNERO. FORMADA EM HARVARD, UMA DAS MAIORES UNIVERSIDADES DO MUNDO, SEUS ESTUDOS TEM COMO FOCO DISCURSOS RACISTAS NAS REDES SOCIAIS, PRINCIPALMENTE NA COLÔMBIA, ONDE VIVEU POR MAIS DEZ ANOS. POLIGLOTA, A IRANIANA DOMINA CINCO IDIOMAS E CONHECE BEM O BRASIL. E SOB ESSA PERCEPTIVA, TEM MUITO A DIZER SOBRE PROBLEMAS EM COMUM QUE AFETAM A AMÉRICA LATINA.

Seus estudos tiveram início na questão do racismo em redes sociais, mas sua análise hoje vai mais longe fala da violência contra a juventude negra na Colômbia e no Brasil. O que esses países têm em comum, nesta questão?

Meus estudos tiveram início na juventude em contextos de violência, levando-me primeiro para a Colômbia e depois para o Brasil. Infelizmente, a maioria dos jovens no meu estudo era de ascendência africana, pois são nos dois países os mais afetados pela violência desenfreada. Ao mesmo tempo, era impossível estudar a violência sem levar em conta o racismo historicamente entrincheirado nos tipos de violência multidimensionais e interconectados nos dois contextos. Brasil e a Colômbia possuem as duas maiores comunidades de afrodescendentes da América Latina e compartilham muitas semelhanças tanto nas dinâmicas e culturais, quanto nas desigualdades estruturais e raciais. O mesmo acontece com outras comunidades no resto da região e um dos meus sonhos é ajudar a construir pontes entre os diferentes países para que os jovens possam se conectar, se inspirar, co-criar e transformar a si mesmos e suas comunidades. Um dos projetos atuais em que estou trabalhando é o Fórum Global da Juventude Negra, com a colaboração de várias universidades do mundo, do setor privado e até mesmo de políticos que apoiam iniciativas antirracistas, como o membro de congresso
afro-britânico David Lammy. O evento destacará, por um lado, as iniciativas de jovens africanos e afrodescendentes em lidar com as limitações estruturais e o racismo sistemático nas suas comunidades e, por outro, unir esforços com os de outros jovens africanos e afrodescendentes para compartilhar seus conhecimentos e competências em empreendedorismo e inovação como motores de mudança.

A violência expressada nas redes sociais pode ser a porta de entrada de outras violências raciais no cotidiano?

Como uma das líderes jovens com quem trabalhei disse uma vez: ‘O digital é o real’. O racismo visto nas plataformas digitais é apenas uma reflexão do racismo histórico sobre qual todos os países da América Latina foram construídos. No entanto, na era digital em que vivemos agora, a informação viaja muito mais rápido do que antes, especialmente discursos difamatórios e a desinformação ou o que é muitas vezes referido como ‘fake news’ como temos visto especialmente em tempos de crise ou antes de grandes eleições políticas. Os danos do racismo digital não estão apenas ligados ao ciberespaço. Foi comprovado que o discurso de ódio nas redes não só se traduz diretamente em crimes de ódio, mas também aumenta o número de casos, a exclusão e a discriminação. No Brasil, como em outras partes do mundo, temos testemunhado como os discursos de ódio e a desinformação nas redes sociais intensifi caram o racismo, a violência, e até mesmo o feminicídio.

Você é iraniana, sinônimo para xenofóbicos de terrorista. Já vivenciou muitas discriminações. O que acha do racismo estrutural brasileiro?

Sou Ivoariense, de Abidjan, na Costa do Marfi m. No entanto, para ser também justa com as muitas identidades que carrego comigo, sou iraniana-colombo-ivoariense-americana e até brasileira. Pertenço a muitos lugares no mundo! Vivenciei muita discriminação pela maneira como as pessoas me percebem. Raça não é biologia, é sociologia e em nenhum outro lugar melhor do que no Brasil podemos entender o papel que o colorismo desempenha na maneira como somos tratados. Eu fi quei realmente ofendida e perplexa a primeira vez que visitei o Brasil e fui chamada de branca, tendo sofrido constante discriminação nas escolas com os franceses e na maioria dos lugares, países do Norte onde sou vista como uma ‘pessoa de cor’, não branca. Fui chamada de ‘árabe suja’.

Fui algemada, fisicamente abusada e jogada na cadeia por um policial branco nos Estados Unidos. O que ainda me faz tremer toda vez que vejo um policial. Uma amiga, que me acompanhava naquele dia, sabiamente me disse: “você sabe o que uma pessoa negra sente nos EUA toda vez que vê um policial? ”. Mas, não posso sequer fingir compreender o profundo racismo que as comunidades negras no Brasil enfrentam diariamente.

Atualmente, no Brasil, existe um movimento muito grande em prol do empoderamento feminino negro. Como vê esses avanços?

O Brasil realmente serve como modelo para o resto do mundo. Enquanto, por um lado, o assassinato de Marielle
Franco fez ressurgir as muitas faces da magnitude longa da violência que está historicamente entrelaçada com
desigualdades raciais e de gênero, manifestada na segregação territorial, na crise política do país e nos retrocessos democráticos, e no surgimento de feminicídios no Brasil, particularmente das mulheres afrodescendentes, por outro também destacou a mudança que seu trabalho representou para o país. O significado de sua morte, especialmente para a comunidade negra, desencadeou o “Efeito Marielle”. Seu
legado se espalhou por todo o país com um número sem precedentes de mulheres negras, LGBTs e mulheres trans envolvidas na política. Os efeitos também foram observados até nas eleições de 2018 na Costa Rica, que marcaram a primeira vez que uma mulher afrodescendente foi eleita vice-presidente na região continental das Américas. A representação e o empreendedorismo das mulheres negras também aumentaram em outros círculos, como no cinema, nos esportes, na academia e nos negócios.

O empreendedorismo negro e feminino tem se mostrado uma das soluções para questões econômicas e sociais negra, como a senhora vê isso?

As mulheres negras no Brasil têm estado na base da hierarquia socioeconômica e estão situadas na interseção de múltiplas formas de exclusão e discriminação. Portanto, não é uma surpresa que elas estejam na vanguarda dos movimentos econômicos transformadores e formem a maior população de empreendedores do país. As mulheres têm se posicionado para mudar as narrativas existentes que colocam os afrodescendentes na base da pirâmide para abraçar oportunidades econômicas, a inclusão social e o empoderamento político. O boom tecnológico combinado com o crescimento econômico criou um ambiente propício a oportunidades para todos. Com habilidades aprimoradas, uma perspectiva internacional e novas ferramentas, as jovens negras podem entrar em novos mercados e liderança para experimentar o sucesso em áreas historicamente negadas
a elas. Em 2018, a Colômbia tornou-se o centro de mídia para divulgar informações sobre empreendedoras negras na América Latina, começando no dia 25 de julho do 2018, lançada pela plataforma de mídia Shock Caracol e a startup internacional Black Women Disrupt. Ao longo do restante do ano, mais de 25 jovens negras foram celebradas nas redes digitais em toda a região e no mundo quebrando paradigmas negativos, destacando suas iniciativas empresariais e construindo pontes através das fronteiras.

A violência policial é algo vivenciado pela juventude negra, no Brasil, Colômbia, Venezuela e outras partes da América Latina. A senhora vê uma forma de se criar uma rede para enfrentar esse problema?

Este tem sido meu sonho por muito tempo! Quando atravessei o mundo, percebi que a juventude de cor (não
branca) e especialmente a juventude negra está enfrentando um conjunto poderoso e específico de estereótipos que os localizam como problemas particulares dos agentes-chave da socialização e do controle social. Eles se sentem isolados, particularmente no lugar onde formam a parte minoritária da população. Um Fórum Global da Juventude Negra servirá de impulso para maiores iniciativas. A proposta é se afastar de uma orientação deficiente para uma abordagem baseada nas aptidões e forças. Além de proporcionar uma plataforma para que jovens africanos e afrodescendentes dialoguem entre si e discutam os marcos de políticas, promovendo abordagens e iniciativas inovadoras e institucionalizadas.

O Brasil é um dos países que mais matam LGBTs no mundo. Os números de estupros e violência contra as mulheres também são alarmantes. Até o final desta entrevista, muitos jovens negros terão morrido vítimas da violência. Seus estudos apontam para uma saída?

fotos: divulgação

“na primeira vez que vim no brasil fui chamada de branca, tendo sofrido constante discriminação na escola com os franceses”

É uma questão bastante complexa e requer uma tese completa, mas posso compartilhar minhas experiências
trabalhando em várias partes do mundo. Acredito que isso exigiria uma combinação de ações dos diferentes
setores da sociedade e a responsabilidade e ônus não podem ser colocado apenas em civis. A discriminação é
uma construção social. Portanto, usar uma abordagem igualitária, começando em uma idade jovem que contemple o jovem desde cedo, e incorporá-lo ao sistema educacional é um começo. Com isso, eu não quero dizer apenas limitada a políticas de ação afirmativa que ajudaram até certo ponto, mas a violência em direção a certas porções da população, como você mencionou, continua. Descobri que em meus estudos de violência, a exclusão em todas as suas formas, particularmente a exclusão econômica, estava no centro da intensificação da violência.

O setor privado tem o potencial de apoiar o crescimento econômico inclusivo e sustentável, por exemplo, mas
precisa ser conjugado com a aplicação de políticas inclusivas e com mercados emergentes, como o ecossistema de Black Money apoiando jovens empreendedores negros, especialmente mulheres. A representação também é fundamental para combater a discriminação e a violência contra um setor da população, quebrando os paradigmas negativos que limitam suas capacidades e oportunidades de crescimento. Descobri que equipar os jovens com as habilidades necessárias para promover seus
empreendimentos e conectá-los a outros jovens através das fronteiras geográficas, por exemplo, ajudá-los a superar os sentimentos de desamparo e isolamento e fomentar o engajamento e a liderança cívicos, e recuperação de representações de suas identidades e realidades.

fotos: divulgação
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