Revista Raça Brasil

Compartilhe

O concerto que uniu ancestralidade, música negra e a potência de uma mulher baiana

No feriado de 20 de novembro, Dia da Consciência Negra, a Casa Rosa viveu uma noite que não foi apenas musical — foi ancestral. Foi memória pulsando em forma de som. E foi justamente ali, no Teatro Cambará, que a clarineta de Daniela Nátali abriu caminhos para histórias que, por muito tempo, ficaram à margem, mas que sempre escorreram no coração da Bahia.

Filha do interior baiano, mulher negra que transforma a própria trajetória em instrumento de resistência, Daniela apresentou o concerto Bahias como quem entrega ao público um pedaço de si. A cada sopro, uma lembrança do território que a formou. A cada nota, um convite a reconhecer a força criativa da música negra baiana. Porque ali, naquela noite, não era só um show — era um reencontro com as raízes.

Com ingressos populares, Bahias integrou o projeto Quinta da Casa e ofereceu ao público uma travessia sensorial pelas diversas Bahias que moldaram a artista. O concerto mistura a matriz africana, o improviso, o jazz contemporâneo e releituras de nomes fundamentais, mas muitas vezes pouco reconhecidos fora do estado. Tudo para reforçar algo que Daniela repete com firmeza: a música da Bahia é profunda, diversa e precisa ser lembrada. Precisa ser vivida.

“Enquanto mulher negra, eu me sinto honrada. É missão, é conquista, é resistência”, disse Daniela, emocionada após a apresentação. “Estar nesse lugar e ver a clarineta como protagonista… é uma realização.”

E a clarineta, de fato, brilhou como raramente se vê. Em Salvador, o instrumento não é tão presente nos palcos. Mas quando surge nas mãos de Daniela, ele ganha uma potência quase narrativa: conta histórias, evoca ancestralidade, abre escutas.

O concerto nasceu das pesquisas da artista sobre as raízes da música baiana e sobre como esse instrumento, tão delicado e sofisticado, poderia dialogar com ritmos que compõem a identidade do estado. A influência de Letieres Leite — músico, educador e referência da música afro-baiana — está presente na estrutura, na liberdade, na pulsação. Letieres, inclusive, segue sendo uma bússola na caminhada de Daniela.

O repertório passou por choro, jazz, samba de Batatinha, canções de Dorival Caymmi, músicas de Gilberto Gil e criações autorais como Pagode de Madeira, Pedido de Roda e Jacaré. Um caldeirão que reflete a Bahia real: múltipla, ancestral, moderna, afetiva.

“Temos um tesouro cultural enorme. Letieres sempre nos lembrava disso. Eu só transformei esse tesouro em clarineta”, resume a artista.

Nascida em América Dourada, Daniela teve seu primeiro contato com o instrumento em um projeto que tentava formar uma filarmônica municipal. Estudou sozinha, tocou em orquestras, entrou no Neojiba, mergulhou na pesquisa de música afro-baiana e, hoje, ocupa um lugar pioneiro na música instrumental, abrindo caminhos para outras mulheres negras.

O palco também recebeu Jordi Amorim (baixo), Lucas Decliê (sax tenor), Lorena Martins (bateria) e Caio Ferreira (teclado). A produção é da Coliga Produções e integra a programação anual do Quinta da Casa, contemplada pelo edital Gregórios Ano IV, da Fundação Gregório de Mattos e da Política Nacional Aldir Blanc.

Para Daniela, a música instrumental não é só técnica — é afeto. “A música comunica. A clarineta fala. E eu espero alcançar as pessoas através desse sopro.”

E conseguiu.

Bahias transformou o Dia da Consciência Negra em algo que vai além da data: um ato de afirmação coletiva. Uma lembrança de que a música negra baiana continua viva, pulsante e necessária. Uma celebração do que fomos, do que somos e do que ainda seremos.

Publicidade

Open chat
Preciso de Ajuda
Olá 👋
Podemos te ajudar?